Sebastião Diógenes Pinheiro
Regional CEARA
–– Good morning! –
cumprimentou-me o corvo que havia dias seguia-me as caminhadas matinais, voando
de árvore em árvore, no bosque de Loudonville.
– Good morning! – respondi com surpresa, mesmo sabendo que
os corvos são inteligentes e costumam imitar a voz humana. Como a pronúncia denunciava
a minha origem estrangeira, o pássaro mostrou-se interessado.
– Where are you from?
– Brasil – respondi com a esperança de alguma referência à minha pátria, ao
Pelé, pelo menos.
– Portugal, Brasil, Moçambique… que beleza a língua de
Camões!
– Ué! Falas português?
– Falo e tenho leitura de todas as línguas que traduziram o maldito poema
de Alan Poe. Abono, contudo, as traduções de Fernando Pessoa e Machado de
Assis, foram meus mestres do belo idioma originário do Lácio.
– Maldito?! Como podes repudiar um poema famoso que te imortalizou? Uma
verdadeira obra prima, patrimônio cultural da humanidade!
– Obra prima, sim, não nego, para os amantes da literatura. Para
a minha ave pessoa saldou a eterna associação com o mistério, com a abominável morte.
Uma tristeza para a raça, sem acrescentar os infortúnios sofridos desde a época
da Europa medieval, já tão crescida. Éramos considerados pelos
franceses os representantes do mal, as almas de padres e freiras perversos, e,
para desonra maior, o diabo, pelos os alemães.
– Compreendo a tua razão de vítima, mas o poema é uma obra imortal, uma
glória que deves a Poe. Valem as compensações da vida.
– Desculpa a minha zanga! Mas não me conformo com a sacanagem que a
humanidade tem feito com a minha biografia, a compreensão humana não pesou as
minhas virtudes – grasnou a ave do admirável “nevermore” dilatando a garganta.
– Que sacanagem a ti fez a humanidade?
– Parece que não lês a Bíblia? Vejo que ignoras as minhas ações em favor da
vida desde o tempo do dilúvio – retrucou o inteligente pássaro desapontado.
– Falas de Noé?
– Sim, sim, aquele ingrato! Quando cessou o dilúvio, ordenou-me fazer um
inventário se havia terra firme. Lancei-me da Barca duas vezes à procura do
matinho. Voei muito, muito além da ordem prescrita, sobrevoei longas
distâncias. Pra teu governo, cheguei a bater asas na região
que viria ser o Ceará, onde nasceria o grande romancista de José de
Alencar.
– Desculpa-me, mas o catecismo nos tem relatado apenas a história da pomba,
a venturosa Columbidae que Noé enviara para a delicada missão,
e que retornou com o raminho de oliveira no bico. Sucesso que dura até hoje.
Assim seja!
– Percebes, agora? Todos os créditos para a alva pomba, e uma grande
injustiça com a negra espécie da Corvidae família. Eu que
procedi as primeiras rondas diluvianas, um verdadeiro voo no escuro, mesmo em
claro dia, nem uma nota de louvor no Gênesis!
– Por que não protestaste junto a Noé?
–– Claro que
fui ter com ele. Mas o velho estava bêbado na cobertura da Arca. Relatei o fato
para o Cão, seu filho, o risco de o pai cair nas águas. Cão subiu
apavorado e flagrou o pai com as partes secretas à mostra. Quando acordou da
embriaguês e viu-se em tal estado, Noé ficou irado com o filho, e
cheio de razão, amaldiçoou o neto Canaã, o caçula de Cão,
coitado, que nada tinha a ver com o peixe – e ironizando -, animal que da Arca
não carecera. Senti-me vingado, embora pesaroso com a sorte de Canaã.
– Tornaste uma ave melhor com a vingança?
– Claro que não! Vingança não traz felicidade a ninguém, seria uma espécie
de sentimento falso, em estado de empréstimo. Felicidade é coisa
autóctone do coração.
– Eitaman!
– O que significa a palavra “eitaman”?
Nem Machado nem Pessoa ma ensinaram – justificava-se o desafeto de Noé.
– É gíria! Que os teus ex mestres não saibam. Voltemos, pois, ao Poe.
Tiveste alguma participação na morte misteriosa do poeta? – perguntei com
cautela, receio de processo.
– Não, mas o vi agonizando no banco da praça. Apesar do que dizem a meu
respeito, não tive natureza para assistir ao seu termo até o fim. Também não
abri o bico para não facilitar as investigações policiais sobre a morte do
Edgard. E como sabes, o mistério tem rendido livros e filmes.
– Para encerrarmos a boa conversa, gostaria de saber qual é a tua relação
com Deus.
– Excelente! Sou-lhe eternamente agradecido pela confiança depositada à
minha penosa pessoa, polêmica para os ignorantes, porém, justificada por Ele.
Estão na Bíblia as minhas virtudes em favor da vida. Deus é o fiador.
– A que sucesso te referes?
– Não sabes? Levei pão e carne para alimentar o profeta Elias no deserto,
onde refugiara-se para se livrar da perseguição de Jezabel, a perversa mulher
de Acabe, rei de Israel. Foi uma tarefa confiada por Deus, podes conferir em
Reis.
– Muito obrigado pelas sábias informações! E desculpa-me a falta de melhor
instrução.
– Leia a Bíblia, Machado e Pessoa, tendes tudo para melhorar.
Se chegares a compreender Camões, te consagrarás nas letras. E para terminar,
retorno ao princípio, saudando-te com o nativo idioma de John Steinbeck: “take care”!
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