Por:
José Maria Chaves
Regional CEARÁ
As horas já avançavam galopantes noite adentro, num mês de novembro cálido, para um ano de inverno escasso. Indubitavelmente aquele calor obrigava, muitas vezes, dona Nozinha fazer semiaberta, quase de um modo permanente, a janela da frente, em conjugação com a parte superior da porta da cozinha, inteiramente escancarada, com o fito de propiciar uma amena circulação de ar no interior da casa.
Seu verdadeiro nome era Leonor, mas,
carinhosamente, desde pequena, todos a tratavam por Nozinha, até mesmo para
fazer coerência com sua delicadeza de gesto e nobreza de comportamento sempre
mantidos. Ainda não chegara aos trinta anos e já carregava o pesado fardo da
administração de uma família constituída por seis filhos menores, com o
primogênito havendo completado nove anos e a caçula, engatinhante, ensaiando os
primeiros passos. Seu marido, fruto de um romance sem a aprovação paterna,
resolvera tentar a vida nos seringais da Amazônia, e, há mais de dez meses
estava ausente. Dificilmente ela recebia notícias dele, isso acontecendo na
maioria das vezes através de retirantes que voltavam, quase sempre, para
escapar da malária ou de qualquer outra doença palustre. A última informação,
trazida por Abdoral de Sousa, que, com o diagnóstico de filariose tivera que
retornar a sua terra a cata de tratamento, não era muito alvissareira, pelo
contrário a deixara preocupada, pois soubera que seu marido havia baixado a
enfermaria do Seringal com muita febre e a pele bem amarelada. Carta mesmo
recebera apenas uma, depois de noventa dias do afastamento, trazendo dentro do
envelope a quantia de duzentos mil reis. Simão, quando rapaz, muito bonito é
bom que se frise, ficara afamado por seu procedimento rotulado de
irresponsável, com a característica de namorador, brincalhão, dado ao jogo de
baralho, não se o pretendendo como genro, qualquer patriarca de respeito como
era o caso do Coronel Antonio Joaquim.
Por isso, se contava a grande decepção
do abastado comerciante com Nozinha, sua linda e prezada filha caçula, no
próprio instante que a impusera o fim do namoro. Destarte, enfrentando momentos
de grande necessidade, guardara para si os problemas, não tendo coragem de
levá-los a seu carrancudo pai. Se, ao menos sua mãe estivesse viva, porém uma
enfermidade insidiosa causara a sua morte, nem bem passara um ano de seu
casamento. Conseguira com o Padre Edgard, caridoso pároco da cidadezinha, o emprego de zeladora da
Igreja Matriz. Tal ocupação viera mesmo a calhar, porquanto fora bem alicerçada
na educação cristã, fazendo o seu trabalho de limpeza e cuidados outros com a
Matriz amenizarem os seus percalços e por vezes os sublimar. As crianças
menores eram cuidadas pelos irmãos mais velhos, ou, na ausência destes, quando
de suas obrigações escolares, pela velha Maria Pedra, uma descendente de
escravos que se arranchara naquela humilde casa. Claro estava, a não existência
de formalidade pecuniária, já que implicitamente tudo se traduzia como troca de
favores.
Naquela noite, refeita com um salutar banho
frio, metida num roupão longo que encobria a surrada camisola, com todos aninhados
– como assim chamava os filhos acomodados em suas redes – já dormindo, Nozinha
visando conciliar o sono, também porque escrevendo para Simão lhe servia como
ataráxico, descarregando as saudades do seu amado na escrita, adjutorizada pela
luz da lamparina de pavio longo, acomodou-se na grande mesa da sala de jantar,
fez mergulhar ligeiramente a pena no tinteiro, e, em um papel pautado, começou
a carta: Querido Simão; no silêncio desta noite de 17 de novembro, quando
nossos filhos já adormeceram, volto a lhe escrever, pela quarta vez, sem que
tenha tido o alento de receber uma segunda cartinha sua. A saudade é infinda e
as lágrimas que rolam no meu rosto... Foi obrigada a interromper o seu desabafo
escrito, por que uma lufada de vento, sem explicação plausível porquanto o
tempo estava parado, apagou a chama que alumiava. Com discreto nervosismo,
apalpou o roupão e, sem dificuldade, encontrou a caixa de fósforos. Atritou um
palito a caixa, novamente pondo acesa a lamparina. Levantou-se e teve o cuidado
de se dirigir a sala, para fechar totalmente a janela, no sentido de evitar
qualquer sopro de vento que viesse interrompê-la de novo. No entanto, nem
sequer continuou a escrita, uma vez que, até de modo assombroso, a tampa da
caixa de sapatos, que estava numa das cadeiras ao redor da mesa, voou e, com o
vento produzido, ato contínuo, põe a sala às escuras. Nozinha, em pânico,
chorando muito, saiu porta a fora, atravessou a rua, até a casa de seu cunhado,
e, freneticamente bateu na sua porta:
– Aniceto,
Aniceto...
O irmão mais
velho de Simão imediatamente atendeu, algo surpreso e preocupado, levantando o
farol acima de sua cabeças:
– Que é isso
Nozinha? O que aconteceu? Por que você está chorando?
– Simão
morreu, Aniceto, recebi um aviso.
– Que é isso
querida cunhada, você está muito nervosa e tudo a impressiona
desfavoravelmente.
Após o breve
histórico do acontecido, Aniceto procurou acalmá-la, principalmente quando fez
a promessa de tomar providências,
imediatamente na manhã seguinte, auscultando o Escritório de Alistamento em
Fortaleza, acerca de noticias do seu irmão e marido de Leonor. Ah, isso ele
faria, com certeza, quando exigiria a mais breve comunicação pelo rádio do Escritório
com o Seringal.
Com efeito,
por volta das dez horas da manhã do dia 18 de novembro, estava sendo atendido
pelo gerente de alistamento, mas, de princípio tomou conhecimento que a
manutenção estava tentando corrigir uma pane no transmissor do Seringal. e. em
sendo assim, aguardasse em casa que, quando houvesse a reintegração, colheria
noticias do alistado Simão das Chagas.
Finalmente,
uma semana depois, Aniceto recebeu uma comunicação telegráfica na qual estava
noticiado o falecimento de Simão na noite de 17 de novembro, próximo passado,
de impaludismo, e, que devido as dificuldades óbvias de transporte, o
sepultamento já se dera na manhã do dia 19, depois da liberação do corpo,
obedecidas as exigências de praxe.
Estava
definitivamente explicado o aviso, na noite do vento fatídico, que Nozinha não
precisava mais escrever a Simão.
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