Por:
Rosiclelia Matuk Fuentes Torrelio
Regional RIO DE JANEIRO
E-mail: rosematuk@globo.com
Reencontrei-o,
após longos 20 anos da Faculdade de Medicina, num plantão de domingo, em Cabo
Frio. O tempo o havia preservado incólume. Os mesmos cabelos cacheados, a mesma
camiseta branca, o mesmo jeans e as mesmas sandálias “de pneu”. Quase nada
havia mudado, apenas alguns cabelos brancos.
Havia
feito Psiquiatria e era nosso plantonista de sábado. Sempre tínhamos um
psiquiatra que participava da equipe e atendia, quando atendia, apenas um
paciente por plantão. Não posso deixar de externar minha inveja. Nós, meros
trabalhadores braçais menos agraciados pelos Deuses, nutríamos certa admiração.
“ Porque não havia escolhido a Psiquiatria... ”, lamentava-me.
Sua
rotina, nos finais de semana, iniciava-se ao ler todos os jornais, deitado na
cama com as pernas cruzadas para cima. A seguir, nos fazia um resumo das
notícias trágicas, mantendo o teor de adrenalina da equipe sempre elevado, com
a preocupação de nos depararmos com o mesmo problema naquele dia.
A seguir
nos enunciava as possibilidades gastronômicas do dia, ao nos comunicar o local
em que iria almoçar, enquanto para nós, simples mortais, restava apenas o
cardápio do dia de teor sempre duvidoso. Voltava praticamente em estado de
graça, o olhar extasiado, comentando que o leitão à pururuca estava ótimo ou
que o espaguete de frutos do mar, divino...
Num
desses plantões, num sábado de carnaval, chegou ao pronto socorro, um paciente negro
de mais ou menos uns dois metros de envergadura, robusto e de ombros largos.
Não, ele não gritava de dor, grunhia ou rosnava escoltado por quatro homens que
o seguravam com dificuldade. Foram necessários seis esquálidos auxiliares de
enfermagem sentarem-se sobre o paciente ao solo, para conterem sua fúria. A
enfermeira, desesperada, correu ao quarto dos médicos em busca do “salvador”.
Num
canto da sala de emergência, numa das macas,eu suturava a fronte de um bêbado,
tarefa normal para um dia de carnaval, quando percebi a entrada de tal criatura
cuja estatura daria sem dúvida quase duas vezes a do nosso psiquiatra de
plantão.
Sim,
finalmente, eu veria nosso psiquiatra em ação e, não perderia isso por nada
desse mundo. Posicionei-me com meu bêbado de forma a assistir em detalhes o
desencadear dos fatos.
Foram
longos os minutos que se sucederam à entrada triunfante do médico, como uma
cena em “ slow motion”. Pé ante pé, balanço lento cadenciado, dando a impressão
de que a enfermeira o havia tirado do seu sagrado descanso.
Posicionou-se
ao lado do paciente, que ainda era contido com sacrifício no chão. Observou a
fúria com que o enorme homem tentava soltar-se, e após determinar a medicação
para a enfermeira, iniciou em vão suas técnicas de controle.
-
“Meu amigo, vamos parar com esse teatro! Meu amigo, vamos parar com esse
teatro” cada vez com maior intensidade de comando pela segunda, terceira,
quarta vez sucessivamente e nada acontecia.
Foram
segundos intermináveis e, de sopetão, o paciente conseguiu soltar o braço que
estava preso e pegou firmemente o tornozelo do médico, que tentava inutilmente se
manter no comando da situação.
Agora
mudava o comando: -“Meu amigo, larga minha perna! MEU AMIGO, LARGA MINHA PERNA
!” .Não percebia que falava cada vez mais alto .
Ao
puxar a perna, o inesperado acontece, a sandália arrebenta. Seu rosto transfigurou-se,
vi pela primeira o ódio estampado na face do doutor que, aos gritos dizia:- “MEU
AMIGO , O SENHOR VIU O QUE FEZ?”.
A
enfermeira em dúvida do que deveria fazer perguntou-me: - “O que faço doutora?
”..Doce vingança, pensei, o destino
colocava em minhas mãos a decisão. Confesso que meu primeiro pensamento foi
mandar aplicá-la no próprio doutor ou dividi-la entre os dois, porém a ética
não me permitiria...
A
pressão dos auxiliares tornava-se tênue. Sem que ninguém esperasse, o paciente
conseguiu desvencilhar-se, ficou de pé e saiu caminhando a passos firmes do
pronto socorro sem olhar para trás, enquanto Itagiba em vão tentava controlar-se.
Nessa
noite, ele não comeu leitão, falou sozinho o tempo todo, pela madrugada afora, lamentando-se
pela sandália: - “Essas sandálias eram do tempo de faculdade!”, disse-me como
se eu não soubesse.
Um
ano após sair do plantão, voltei no Natal apenas para visitar os colegas médicos
e ler a crônica escrita sobre Itagiba. Lá estava ele com as mesmas sandálias
agora consertadas...
Moral
da História: jamais arrebentem as sandálias de um psiquiatra, pois eles mantêm
com elas uma total relação de dependência afetivo-emocional-sexual!
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