Márcia da Silva Sousa
Regional MARANHÃO
E-mail: silvasousa_m@hotmail.com
Dona “Dos Anjos” ou Maria de Durval,
como é mais conhecida Dona Maria dos Anjos, é casada com “Seu”Durval e foi uma das primeiras moradoras da Boa
Vista. Nascera ali, pelo que se lembra. Ali se criara e se casara com Durval,
jovem que cultivava flores “de defunto” para vender na praça do cemitério do
Gavião. Durval é um homem forte e orgulhoso do ofício, que só abandonou por
imposição dos filhos, após um AVC que o deixou meio sem juízo. A Boa Vista é uma
comunidade rural que surgiu entre São José de Ribamar e São Luís, sem que
ninguém soubesse dizer, até bem pouco tempo, a qual dos dois municípios
pertencia. Bom para alguns políticos, que lá arrebanhavam votos e depois se
eximiam da responsabilidade de promover as benfeitorias que prometeram, visto
que era ali uma espécie de limbo intermunicipal.
Dos Anjos é uma mulher vigorosa, de
olhar severo, raciocínio rápido e um humor peculiar. Matriarca no amplo sentido
da palavra é respeitada com reverência por filhos, netos e pela comunidade. A
conheci anos atrás, através de um filho seu que se tornara meu funcionário e
posteriormente meu compadre. Fizemos
amizade fácil, admiração mútua, coisa rara entre mulheres, assim, logo de cara.
Frequentar o sítio de Dos Anjos é sempre um retorno à infância na casa dos meus
avós, tudo muito parecido. Costumava
levar meus filhos lá para brincarem enquanto ficávamos numa prosa gostosa à
sombra de uma mangueira. Me divertia muito com o papagaio, vendo a criação de
galinhas da terra e os porcos criados presos à base de frutas e sobras de
comida, além dos lindos canteiros com flores “de defunto” de toda sorte, que
seu Durval fazia questão de mostrar cheio de orgulho e sempre me oferecia um
buquê que eu aceitava meio a contragosto, vai agourar outra. Uma gorda galinha, guisada com batatas e famoso
pirão de parida eram servidos nestas ocasiões, acompanhados de arroz pilado em
casa, macarrão na manteiga de garrafa, fava, feijão com jabá, salada de alface e
tomates cultivados lá mesmo, e para
arrematar algumas cervejas estalando de geladas. O banquete me nocauteava e eu caía
em uma rede na varanda, onde passava o resto da tarde.
Sabedora de minha preferência pelas
coisas do mato, vez por outra recebo em casa uma galinha caipira, um capão ou
um pato, todos devidamente tratados, só no ponto de por na panela, gentileza
que Dos Anjos faz questão de manter, ignorando meus falsos protestos para que
não se incomode comigo. Ela manda e ponto final.
Um dia, cedinho, recebi uma ligação,
era Dos Anjos, esbaforida e falando mais alto que de costume:
- Bom dia senhora! A senhora quer um
galo pro seu almoço amanha? É que tem um galo doido aqui que só ataca as
meninas! Acabou de dar uma esporada na barriga de uma neta minha! Senhora, isso
tá de um jeito que ninguém pode mais ir no terreiro!
- Calma mulher! A menina tá muito
ferida? Mande esse galo pra cá que se dá uma boa serventia a ele!
Ao voltar do trabalho à noitinha, me
deparo com um galo enorme, vivo, amarrado dentro de um cofo, emitindo um som
macabro, quase um grunhido e muito ameaçador. Pensei: pra Dos Anjos não ter
dado cabo do bicho ele deve ser o cão em forma de galo! Mas penalizada com a
situação do prisioneiro pedi ao meu funcionário que acabasse logo com aquilo,
mate logo esse bicho que amanhã eu tempero. Tomei um banho e me deitei pensando
nos galos que povoaram minha vida, os garnizés valentes que me botavam pra
correr quando menina, o imponente galo branco com rabo de penacho amarelo que
mandava no terreiro da casa da vovó, o galo azulado que só vi na casa do tio Zé
e jurava que era um urubu, o galo magro, coadjuvante no terreiro do galo branco
e que acabou sendo devorado por uma mucura. Tantos galos, sono, cansaço... adormeci.
Acordei de um salto com um barulho
ensurdecedor, atordoada tentava entender o que acontecera, o relógio marcava
4h20min! Outro estrondo! Outro susto!
Que é isso? Parei. O coração querendo
sair pela boca! Silêncio... Devagar olhei entre as frestas da janela, nada. De
repente outro estrondo e novo susto. Era o galo!!! Ele não matou o galo que
agora estava cantando, retumbante, rouco e forte, a plenos pulmões! E assim se
manteve até o dia clarear. E não houve na vizinhança um cristão que não tivesse
sido acordado pelo infame. Os condicionadores de ar, as paredes à prova de som,
nada, absolutamente nada abafava o canto sobrenatural daquele galo. Ao sair de
casa deparei com alguns vizinhos na rua. Todos querendo saber de onde surgira o
galo da madrugada. Com a cara mais limpa me fiz de desentendida: eu não ouvi
nada, estava tão cansada que apaguei na cama.
E saí de fininho, deixando em casa, recomendações severas quanto ao
destino do galo doido. Passei a manhã com sono, trabalhando em ponto morto e
pensando naquele galo. Ao chegar para o almoço lá estava ele, lindo, ao molho
pardo, numa travessa de louça, acompanhado de arroz pilado em casa e pirão de
farinha d’água. Abri uma cerveja trincando de gelada, depois dormi a tarde
toda.
***
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