25 fevereiro, 2017

CASAMENTO TROPICAL

Por:
Maria de Fátima Barros Calife Batista
Regional PERNAMBUCO
E-mail: facalife@uol.com.br












Estamos vivendo um tempo de mudanças bruscas, nos hábitos e correspondentes significados. Casar já não mais significa zelar pela perpetuação da espécie humana que por sinal, anda muito desacreditada de valores, dantes preservados. No reino animal, o homem foi o único agraciado com a racionalidade. Mas ao que parece, está regredindo no sentido contrário ao que seria de esperar quanto à evolução. A destruição galopante que promove, no planeta em que habita, e a violência desenfreada contra os semelhantes, não deixam dúvidas quanto ao futuro sinistro reservado aos sobreviventes.

Voltando ao tema do acasalamento, entre os animais cumpre-se um ritual de cortejo que precede o ato. De tanto tornar-se rebuscado o ritual humano passou a ser supérfluo. Não mais anuncia o início, ou reinício, das atividades sexuais, tanto nos casos de um primeiro casamento, quanto nos que põem fim à viuvez. Aliás, vale lembrar que o homem é o único entre os animais, que exerce o acasalamento, sem fins reprodutivos. Além da capacidade de raciocínio e elaboração de uma linguagem complexa, o homem foi beneficiado com o desejo sexual, independente do período da fertilidade feminina. Graças a ele, esse complemento da afetividade antecede a cerimônia ritualística, seja ela religiosa ou profana.
      
Pois bem, enquanto a biologia apostava nos métodos naturais de procriação, as mulheres apoiadas pelos parceiros, que hoje correm da paternidade como o diabo da cruz, deixaram de considerar o instinto maternal como prioridade. Entrou no mercado de trabalho com a determinação de alcançar a igualdade de direitos, pouco ligando para a sobrecarga que enfrentaria no futuro, quando a maternidade viesse a concretizar-se. Atualmente fala-se até em produção independente, em lugar da união compartilhada dos encargos, sejam eles divididos com pessoas diferentes ou iguais em gênero. Vale mais se garantir independência financeira antes de subjugar-se a uma união supostamente estável que muitas vezes se desfaz por motivos os mais banais. A prática de congelamento de embriões, e posterior seleção discriminativa são passíveis de processo e condenação, pelas normas da Bioética. Mesmo assim, são exercidas.
       
Todo este preâmbulo foi elaborado com a segunda intenção de relatar, a seguir, uma cerimônia matrimonial atípica. Pelas características do local escolhido, pela indumentária dos convidados, e os acepipes gastronômicos oferecidos, dei-lhe a alcunha de “Casamento Tropical”!
       
O convite, feito com a antecedência de apenas uma semana, surpreendeu os frequentadores de uma praia nordestina, restritos a uma faixa de uns cinquenta metros, onde o mar é protegido pelos arrecifes. Na fase de maré baixa, forma-se ali uma pequena baía, apelidada de “Aquário de Deus”. Lá, tubarão nenhum consegue encalhar! A casuística de mortes é alta, apenas porque esse pedaço da natureza é o preferido dos idosos do bairro. Vez em quando, alguém desaparece de cena. Se demorar um mês sem dar notícias, já se providencia uma missa para encomendar a provável transposição da alma penada. A figura mais carismática do local tem lugar cativo no banco de concreto, que estabelece o limite entre a calçada e a areia da praia. Fica situado ao lado de um quiosque, onde são comercializados cocos verdes, garrafas d’água, e outros produtos comestíveis. Pela assiduidade e liderança intelectual exercida, é um “jovem jornalista” passando já dos oitenta, com experiência profissional respeitável e contador de estórias memoráveis, jocosas e por vezes, inacreditáveis... Há cerca de uma década, namorava uma senhora que apesar de aparentar um pouco menos de idade que ele, já é bisavó. Muitos caminhantes do calçadão fazem uma pausa para divertirem-se, escutando-o. Depois de algumas cenas públicas de ciúme, protagonizadas pelo casal, resolveram oficializar a relação. Seria armado um toldo na areia, caso houvesse ameaça de chuva. Ali, existe uma rampa que dá acesso à areia. Todos os frequentadores do local se conhecem. Relacionam-se, em geral com bom humor e carinho. Uma barraquinha volante vende abacaxi e empresta “apoio de guarda” às sacolas das “meninas da praia”, quando estas se encorajam para entrar no mar. A princípio veiculou-se o boato de que o Pastor, celebrante do casório, chegaria à praia a bordo de uma jangada. Esse fato não veio a acontecer pois as manhãs estavam nubladas e os ventos poderiam atrapalhar a pretensa curta navegação.

No dia e hora marcados, cheguei pontualmente, vestida de modo esportivo. O cenário já estava armado. Uma mesa ostentava o majestoso bolo branco ornado com flores de glacê na cor das rosas. Outra mesa, também armada sobre a areia, estava cheia de frutas da época, cortadas em pedaços e espetadas por palitos, para facilitar o serviço. Abacaxis, melões, mamões e melancias disputavam espaço com fatias de bolo de rolo e brigadeiros. Salteadas, caixas de sucos de frutas alertavam que não haveria brinde alcoólico. Bancos e cadeiras de praia formavam um círculo em torno dessas mesas.  Penetras ocasionais logo se chegaram, curiosos e tentados a usufruir do banquete. Outros queriam saber se havia algum golfinho, ou tartaruga, que o mar rejeitara por estarem feridos, casos já registrados anteriormente no local. Logo se formou uma multidão. O sol foi esquentando. Não havia assentos suficientes. Houve um discreto reboliço causado pelo receio de que o glacê do bolo se derretesse. Mas isso não aconteceu apesar do discurso prolongado do pastor. Engessado, dentro de uma camiseta de mangas longas e bermuda sustentada por um suspensório, o celebrante segurava a Bíblia com a mão direita e, talvez por força do hábito, mantinha, na mão esquerda, a aba de um boné com a concavidade disponível para receber uma dádiva, caso alguém resolvesse ter a feliz iniciativa. O público presente era diversificado, com uma ligeira predominância de mulheres. 

Os comentários paralelos não paravam de acontecer. Aí, deu-se a inadequação do conteúdo do discurso: Em alto e bom som dizia o homem de Deus: “O Macho foi delegado pelo Altíssimo a prover as necessidades da mulher. Dotado de toda a criatividade, ele seria ajudado pela fêmea a qual, por sua vez, deveria lhe jurar submissão”. Seguia com alegações explícitas de homofobia. Exaltava a Bíblia como proclamadora da heterossexualidade, sendo a única possibilidade justificável da satisfação carnal. Cochichos proliferaram-se. Homens diziam: “Vou gravar esse discurso para transmiti-lo a minha mulher”. Outros murmuravam, entre os dentes: “Em que época esse pastor está vivendo? Nem Jesus Cristo era tão rigoroso...” As mulheres revoltavam-se com a humilhação. Aos poucos, sorrateiramente, foram se aproximando da mesa de quitutes, pois a maioria comparecera em jejum, dada a precocidade da hora matinal anunciada para a celebração. Todos estavam famintos, sedentos e afogueados. A princípio, faziam pequenas incursões aos alimentos para em seguida, disfarçadamente, afastarem-se. Contudo, antes mesmo de ter sido dada por encerrada a cerimônia, a comida voou. Aí, resolveram partir o bolo. De imediato, formou-se uma fila. Mas, já não havia mais pratinhos de plástico, para servi-lo.  Encorajaram os convivas a pegar guardanapos e copinhos no quiosque. Na turbulência que se criou, ninguém se lembrou de guardar um pedacinho de bolo, que fosse, para o dono do quiosque que de tão antigo no lugar já estendeu as funções do atendimento à segunda geração da família. Não restam dúvidas de que foi uma solução criativa, achada pelos nubentes, em tempos de celebrações caríssimas em que os casamentos atuais se transformaram. Porém, um pouco mais de cuidado na escolha do celebrante não faria mal. E fica um alerta quanto à escolha dos convivas: É arriscado convidar-se um escritor! O tiro poderá sair pela culatra. Um cronista sempre estará atento às circunstâncias pitorescas de um evento. Pois, é de lá que ele absorve matéria-prima para as suas “criações ficcionais”! 




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