Ruy Perini
Os loucos precipitam-se
aonde os anjos temem colocar os pés. (Alexander Pope)
O
eterno em um instante pode ser a etérea forma ou o sólido semblante capturado
pelos olhos e aprisionado pelas mãos através dos instrumentos do artista.
***
Eu
ainda não tinha certeza de quantas provas necessitaria para ter a vera imagem.
Precisava captar cada linha, cada gesto e cada poro daquele corpo transportando
tudo para a tela que eu mesmo preparara. A sequência era um complexo sistema
para transformar um organismo em dados digitalizados e depois concretizados em
imagem obtida pela combinação de tintas em um plano de tecido, tudo conseguido
pela transposição da vida dos involuntários fornecedores da mais pura matéria
orgânica. No início eu não imaginava como o pintor em Hawthorne conseguira
aprisionar na segunda dimensão a vida dos seus modelos. Mas Viersilov[1]
pôde mostrar-me na fotografia o que eu buscava.
Dissera-me
que “as fotografias são muito
raramente parecidas, pois o original, isto é, cada um de nós, é tão raramente
semelhante a si mesmo... São raros os instantes em que o rosto reflete o traço
essencial do homem, seu pensamento mais singular”, enfim, sua emoção mais sincera e pessoal. “O pintor desenha os traços que marcam esse pensamento essencial
e recôndito sentimento, mesmo se eles não estão marcados no semblante do modelo
no momento em que os pinta. O fotógrafo surpreende o homem tal como ele é, no
momento exato em que a expressão da emoção humana” – ou animal – “estampa o
sentimento do objeto retratado.”
A
luz, com a sua temperatura, brilho, sombra, cores e tonalidades, enquadra e
permite – ou não – a real transparência da fisionomia, semblante característico
e único de cada ser em cada instante.
Viersilov
esclarecera-me ainda: “aqui, neste
retrato, o sol apanhou como por acaso Sônia no seu instante essencial, pudica,
docemente amorosa, com a sua castidade um pouco selvagem, medrosa. Como era
feliz então, uma vez convencida de que eu desejava tanto ter o seu retrato!”
***
Eu
não sabia até então que um retrato pudesse portar tamanha semelhança com o
original. “Não uma semelhança qualquer, mas uma extraordinária semelhança;
semelhança espiritual, por assim dizer: dir-se-ia um verdadeiro retrato de mão
de um artista e não uma prova mecânica.”[2]
A
espera do momento exato da incidência ideal da luz era angustiante, pois não
poderia estender-se ainda por muito tempo, sob a pena de perder a modelo. Eu
não conseguiria manter ainda por muito tempo a forma e o semblante daquele
corpo, embora ele ainda estivesse com vida. Eu não sabia todas as consequências
dos efeitos da droga no ser humano, embora a tivesse bem experimentado em
outras espécies. Ainda me doía um pouco a lembrança de Eudora, a gata da tia
Eugênia que, coitada, precisou ser sacrificada para que eu testasse uma teoria.
Eu me afeiçoara ao bichano – e isso foi essencial para que ela confiasse em me
seguir e assim poder colaborar com a minha experiência de concretizar uma
fantasia.
Eu
precisava acertar o posicionamento ideal e, por isso, mais alguns instantes
daquele semblante sereno e congelado em estado de graça na minha retina, para
acionar o mecanismo de transporte de todas as sequências genéticas que
nutririam a composição final na minha tela. Penso que a arte hoje precisa da
ciência para atingir o seu objetivo com a máxima precisão e isso não envolve só
a técnica do hiper-realismo ou da captação da luz através de meras reações
químicas ou de pixels digitalizados
no écran e fixados na segunda dimensão. Há desejo e paixão estampados em um
foto-retrato que registra definitivamente o âmago do modelo. O ato registrado
quimicamente em uma chapa fotográfica ou eletronicamente em um chip pode também
captar-lhe a alma, ato aparentemente inócuo, mas que, segundo crença antiga,
desproveria o representado desta entidade essencial à vida. Mas o ato de ver
unidirecionalmente não provê realmente a virtù
visiva arte da essência da vida, embora possam ser imagens que irão permanecer
eternamente na retina pessoal do espectador e mesmo do imaginário de toda a
humanidade por muitos séculos. Preciso me sentir olhado pela representação
imagética do representado para perceber o momento desejado e que só se
apresenta naquele exato instante em que tudo paralisa. O olho vê, mas precisa
também ser olhado e ver juntamente com todos os olhos do corpo e da alma. Olhos
que veem, sentem, escutam, sabem, cheiram e pressentem sextualmente na quarta
dimensão do total perceber e representar o corpo e o desejo inerente a ele.
A
imagem de acurada percepção voltada para a representação fiel da experiência
exige uma doação total da psique, fonte do elã vital e manancial de imagens e
símbolos que nutrem a impossibilidade do cavalheiresco amor.
A imagem
de pura beleza e viva sensação no retrato da amada é a única possibilidade de eternizar
e curar o platonismo desse amor. Não se trata de um pacto como o de Dorian
Gray, mas do transporte total da vida congelada nas duas dimensões contidas na
moldura.
É
lamentável para a arte e para a ciência que tão elaborado método de criação não
poderá jamais ser repassado para as gerações vindouras. Mas eu estava
satisfeito. A vida assim aprisionada estaria imune às cruezas do tempo e,
portanto, do envelhecimento. Sim, eu estava pronto. Faltava apenas consumar-se
o processo iniciado e arrumar um jeito de repeti-lo comigo mesmo. Era só
descobrir como disparar o processo sendo eu mesmo o seu objeto. Não é tão
simples como programar um dispositivo associado a um relógio, pois depende de
saber o exato momento de captação dos fenômenos físicos ideais, o que ficava
difícil estando eu nos papéis de agente e de objeto ao mesmo tempo.
***
E
agora parece tudo acabado. A estupidez e a insensibilidade dos homens e suas
leis interromperam-nos no exato instante da transubstanciação, fazendo que eu
perdesse tudo o que conseguira e fazendo perder-se a vida de Verônica sem que
eu saiba agora por onde erra a sua psique, já que não era para ela a morte, mas
a perda do caminho para a eternização na própria imagem.
Paciência,
amada minha. Não ficarei detido por muito tempo, e garanto que descobrirei como
retomar o processo e descobrir um jeito de recapturá-la e transportarmo-nos os
dois ao mesmo tempo para as delícias de uma vida congelada na vera imagem do
eterno instante de graça e beleza sem qualquer interferência do tempo, da
insensibilidade e da imbecilidade humanas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por participar.