24 maio, 2017

FOTO-RETRATOS - A PAIXÃO CONGELADA NUM CLARO INSTANTE

Por:
Ruy Perini
Regional ESPÍRITO SANTO
E-mail: ruyperini@yahoo.com.br








Os loucos precipitam-se aonde os anjos temem colocar os pés. (Alexander Pope)

O eterno em um instante pode ser a etérea forma ou o sólido semblante capturado pelos olhos e aprisionado pelas mãos através dos instrumentos do artista.

*** 
Eu ainda não tinha certeza de quantas provas necessitaria para ter a vera imagem. Precisava captar cada linha, cada gesto e cada poro daquele corpo transportando tudo para a tela que eu mesmo preparara. A sequência era um complexo sistema para transformar um organismo em dados digitalizados e depois concretizados em imagem obtida pela combinação de tintas em um plano de tecido, tudo conseguido pela transposição da vida dos involuntários fornecedores da mais pura matéria orgânica. No início eu não imaginava como o pintor em Hawthorne conseguira aprisionar na segunda dimensão a vida dos seus modelos. Mas Viersilov[1] pôde mostrar-me na fotografia o que eu buscava.

Dissera-me que “as fotografias são muito raramente parecidas, pois o original, isto é, cada um de nós, é tão raramente semelhante a si mesmo... São raros os instantes em que o rosto reflete o traço essencial do homem, seu pensamento mais singular”, enfim, sua emoção mais sincera e pessoal. “O pintor desenha os traços que marcam esse pensamento essencial e recôndito sentimento, mesmo se eles não estão marcados no semblante do modelo no momento em que os pinta. O fotógrafo surpreende o homem tal como ele é, no momento exato em que a expressão da emoção humana” – ou animal – “estampa o sentimento do objeto retratado.”

A luz, com a sua temperatura, brilho, sombra, cores e tonalidades, enquadra e permite – ou não – a real transparência da fisionomia, semblante característico e único de cada ser em cada instante.

Viersilov esclarecera-me ainda: “aqui, neste retrato, o sol apanhou como por acaso Sônia no seu instante essencial, pudica, docemente amorosa, com a sua castidade um pouco selvagem, medrosa. Como era feliz então, uma vez convencida de que eu desejava tanto ter o seu retrato!”

*** 
Eu não sabia até então que um retrato pudesse portar tamanha semelhança com o original. “Não uma semelhança qualquer, mas uma extraordinária semelhança; semelhança espiritual, por assim dizer: dir-se-ia um verdadeiro retrato de mão de um artista e não uma prova mecânica.”[2]

A espera do momento exato da incidência ideal da luz era angustiante, pois não poderia estender-se ainda por muito tempo, sob a pena de perder a modelo. Eu não conseguiria manter ainda por muito tempo a forma e o semblante daquele corpo, embora ele ainda estivesse com vida. Eu não sabia todas as consequências dos efeitos da droga no ser humano, embora a tivesse bem experimentado em outras espécies. Ainda me doía um pouco a lembrança de Eudora, a gata da tia Eugênia que, coitada, precisou ser sacrificada para que eu testasse uma teoria. Eu me afeiçoara ao bichano – e isso foi essencial para que ela confiasse em me seguir e assim poder colaborar com a minha experiência de concretizar uma fantasia.

Eu precisava acertar o posicionamento ideal e, por isso, mais alguns instantes daquele semblante sereno e congelado em estado de graça na minha retina, para acionar o mecanismo de transporte de todas as sequências genéticas que nutririam a composição final na minha tela. Penso que a arte hoje precisa da ciência para atingir o seu objetivo com a máxima precisão e isso não envolve só a técnica do hiper-realismo ou da captação da luz através de meras reações químicas ou de pixels digitalizados no écran e fixados na segunda dimensão. Há desejo e paixão estampados em um foto-retrato que registra definitivamente o âmago do modelo. O ato registrado quimicamente em uma chapa fotográfica ou eletronicamente em um chip pode também captar-lhe a alma, ato aparentemente inócuo, mas que, segundo crença antiga, desproveria o representado desta entidade essencial à vida. Mas o ato de ver unidirecionalmente não provê realmente a virtù visiva arte da essência da vida, embora possam ser imagens que irão permanecer eternamente na retina pessoal do espectador e mesmo do imaginário de toda a humanidade por muitos séculos. Preciso me sentir olhado pela representação imagética do representado para perceber o momento desejado e que só se apresenta naquele exato instante em que tudo paralisa. O olho vê, mas precisa também ser olhado e ver juntamente com todos os olhos do corpo e da alma. Olhos que veem, sentem, escutam, sabem, cheiram e pressentem sextualmente na quarta dimensão do total perceber e representar o corpo e o desejo inerente a ele.

A imagem de acurada percepção voltada para a representação fiel da experiência exige uma doação total da psique, fonte do elã vital e manancial de imagens e símbolos que nutrem a impossibilidade do cavalheiresco amor.

A imagem de pura beleza e viva sensação no retrato da amada é a única possibilidade de eternizar e curar o platonismo desse amor. Não se trata de um pacto como o de Dorian Gray, mas do transporte total da vida congelada nas duas dimensões contidas na moldura.

É lamentável para a arte e para a ciência que tão elaborado método de criação não poderá jamais ser repassado para as gerações vindouras. Mas eu estava satisfeito. A vida assim aprisionada estaria imune às cruezas do tempo e, portanto, do envelhecimento. Sim, eu estava pronto. Faltava apenas consumar-se o processo iniciado e arrumar um jeito de repeti-lo comigo mesmo. Era só descobrir como disparar o processo sendo eu mesmo o seu objeto. Não é tão simples como programar um dispositivo associado a um relógio, pois depende de saber o exato momento de captação dos fenômenos físicos ideais, o que ficava difícil estando eu nos papéis de agente e de objeto ao mesmo tempo.

*** 
E agora parece tudo acabado. A estupidez e a insensibilidade dos homens e suas leis interromperam-nos no exato instante da transubstanciação, fazendo que eu perdesse tudo o que conseguira e fazendo perder-se a vida de Verônica sem que eu saiba agora por onde erra a sua psique, já que não era para ela a morte, mas a perda do caminho para a eternização na própria imagem.
  
Paciência, amada minha. Não ficarei detido por muito tempo, e garanto que descobrirei como retomar o processo e descobrir um jeito de recapturá-la e transportarmo-nos os dois ao mesmo tempo para as delícias de uma vida congelada na vera imagem do eterno instante de graça e beleza sem qualquer interferência do tempo, da insensibilidade e da imbecilidade humanas.
  


[1] Personagem do romance “O adolescente” de F. Dostoievski.
[2] Fala de Dolgorúki, protagonista do mesmo romance.


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