Carlos Augusto Ferreira Galvão
A
madrugada amazônica iniciava-se enquanto curtia minhas últimas horas de
Santarém, andando pelo calçadão da Avenida Tapajós, na beira daquele rio que
tinha visual de beira de mar. Pensava neste último mês de grande agitação pela
proximidade do tempo em que conheceria a cidade onde tinha nascido, e da qual
tinha saído aos dois anos de idade.
Desde que
recebi um telefonema de Toscano, um velho amigo de infância, convidando-me para
a festa do Çairê (é assim mesmo que se escreve), onde também me encontraria com
o Coutinho (outro amigo de infância que não via havia mais de três décadas),
não cabia outro tema em minha cabeça.
Santarém
surpreendeu-me; esperava encontrar uma cidade pobre, cheia de mendigos... e o
que encontrei foi uma cidade de 300.000 habitantes, horizontalizada, sem
edifícios altos, limpa, com um comércio pujante e, o mais surpreendente,
absolutamente sem mendigos, sem crianças de rua, sem vendedores de bugigangas
nos faróis, enfim uma cidade totalmente fora dos padrões das cidades brasileiras.
A festa do
Çairê tem origem na religião indígena, mas dois séculos antes os jesuítas a
haviam mitigado com características cristãs, e atualmente se transformou num
maravilhoso festival da cultura paraense. Dois grupos folclóricos (o “Boto
Tucuxi” e o “Boto Cor de Rosa”) se apresentam numa arena, como duas escolas de
samba que trocaram o samba pelo carimbó, esta linda e sensual dança amazônica.
Via-se carros alegóricos, via-se sincretismo religioso (até a Virgem Maria
aparecia entre feiticeiros indígenas, etc..), via-se saias que esvoaçavam ao
som dos tambores e na cadência dos requebros das caboclas, via-se a alegoria do
boto, após virar homem, seduzindo as meninas...
Nestes
cinco dias de festa, Santarém foi uma excitação só. A cidade encontrava-se cheia
de turistas de Belém, do Brasil e até do exterior. Almoçando num restaurante,
vi velhos amigos de meus tempos de Belém, até a Maria de Fátima Palha que daria
um show após a apresentação dos Botos; ela é conhecida como Fafá de Belém, e no
restaurante exercitava sua cristalina gargalhada que tanto cativa os Paulistas.
A festa
era num vilarejo distante 40
km da sede do município, numa praia de nome Alter do chão.
Belíssima; difícil imaginá-la sendo uma praia de rio, com areias branquinhas
como neve, e a outra margem do Tapajós se escondendo depois do horizonte. Ao
vê-la pela primeira vez, por um momento fiquei paralisado, como intoxicado com
aquele exagero do belo.
Meu último
ato na cidade, foi uma missão cultural outorgada pela Sobrames-SP, a fim de procurar
interlocutores mocorongos (palavra que define os naturais de Santarém) para
interagirmos culturalmente com esta importante cidade paraense: Reuni-me em um
jantar com alguns intelectuais no Bar Mascote, o mais tradicional do lugar.
Agora, já
no fim desta viagem de sonhos, encontrava-me recebendo as últimas carícias de
calor da cidade, e ele apareceu saindo da escuridão e se aproximando de mim. A
velha neurose paulistana se manifestou, e imaginei que seria assaltado.
Enquanto suava frio, o rapaz de aproximadamente 20 anos, parou em minha frente
e desanuviou minha apreensão abrindo um sorriso do tamanho do Pará.
Não havia
pureza naquele sorriso; era assim meio maroto, uma coisa meio moleca, meio
sem-vergonha. Falou, sem tom de súplica e sem perder aquele sorriso que
iluminava a penumbra da madrugada: -“Estou com fome”. Automaticamente estendi
para si uma nota de cinco reais, e antes que me desse conta recebi daquele
rapaz um beijo em minha face direita, que me deixou absolutamente perplexo. Não
era um beijo sensual e senti que era algo muito maior que um ser humano, aquilo
que me beijou. Senti-me beijado pela cidade, a minha cidade, meu torrão natal.
A cidade beijava um velho mocorongo, apartado de si por 56 anos. Depois, o
rapaz afastou-se desaparecendo pela madrugada.
Fui para o
hotel muito emocionado, e com uma certeza: aquele rapaz era um boto que
procurava caboclas para seduzir nas barrancas do Tapajós, e resolveu fazer um
amigo.
Jamais
esquecerei Santarém e o beijo que recebi. Troquei uma curiosidade em meus
documentos, por um deslumbramento e uma imensa saudade.
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