Walter Gomes Miranda Filho
Desde que chegara ao Batalhão, o
Capitão Carioca se tornara uma pedra no sapato do Tenente Cearense, ou no
coturno, para ser mais fiel ao tipo de calçado adotado naquela organização
militar, sediada nos rincões da fronteira brasileira com a Bolívia.
Carioca
era o típico militar de carreira, ingresso nas escolas preparatórias ainda
adolescente e saído havia poucos anos da Academia. Seu sonho era atingir o
generalato, façanha reservada aos poucos e afortunados oficiais sem manchas no
currículo e que contassem ainda com uma boa dose de apadrinhamento nas esferas
superiores – leia-se Brasília.
Já
Cearense era apenas um R2, como são designados os oficiais temporários, em
grande parte recém-formados da área de saúde, que se engajam às Forças Armadas
para quitação do serviço militar obrigatório.
Ao
contrário de Carioca, que pretendia permanecer por toda a vida naquele tipo de
ambiente, Cearense ali estava apenas de passagem, embora de forma voluntária,
pois havia sido dispensado definitivamente da obrigação aos 18 anos de idade
por deficiência física. Ao concluir o curso de medicina, vislumbrara a
oportunidade de dar o troco no “colega” que o chamara de quase cego no teste de
acuidade visual e o considerara incapaz para o serviço militar.
Carioca
respirava regulamentos e os citava de memória, seguido e salteado, sempre que
queria exercer sua autoridade, a qual impunha aos subordinados com arrogância e
pela força das estrelas que carregava literalmente nos ombros. Cearense era o
doutor, como a ele se dirigiam superiores e subalternos, e aos poucos fora
granjeando a simpatia de todos, pois a todos tratava com respeito além de
curar-lhes as pequenas mazelas como bolhas, calos e unhas encravadas. Raramente
aparecia um resfriado ou uma diarréia; todos gozavam de excelente saúde, afinal
supunha-se serem verdadeiros guerreiros, a primeira linha de defesa da pátria
amada...
Paulatinamente,
Carioca foi desenvolvendo uma espécie de despeito em relação a Cearense, e não
há coisa pior do que ciúme em homem, ainda mais capitão, ainda mais do
Exército, a mais “militar” das Armas, ainda mais subcomandante, função a que
Carioca fora guindado após a transferência do Capitão Pernambucano, o melhor
amigo do Cearense até então.
A inveja nascia da admiração que Cearense despertava em todos, até pelo seu jeito
cearense de ser: expansivo, brincalhão embora respeitoso e cumpridor rigoroso
de suas obrigações. Como se não bastasse, ainda animava as rodas de samba com
seu violão afinado e era o artilheiro do time de futebol do quartel, que
disputava o campeonato local.
Tantos
atributos faziam Carioca exercer marcação cerrada sobre Cearense, sempre à
procura de algum senão em sua conduta, algo que pudesse enquadrar nos
regulamentos para chamar-lhe a atenção ou mesmo puni-lo. Mas Cearense não dava
“sopa na crista”, para usar o jargão corrente e como já se dera conta da
perseguição, esmerava-se ainda mais, tanto no cumprimento das missões e seus
prazos cada vez mais exíguos, como no corte rente do cabelo e do bigode ou no polimento dos coturnos e da fivela de
latão do cinto, que refletia, como um verdadeiro espelho, não só as
imagens diante de si, mas,
metaforicamente, sua resposta eloqüente à rixa do Carioca.
Após
alguns meses de silenciosa resistência, Cearense começou a perder a paciência
com Carioca e passou a estudar uma maneira de desmoralizá-lo, sem evidentemente
fornecer-lhe munição para uma punição. Observou que Carioca gostava de corrigir
pequenos erros de português dos comandados, chegando mesmo a mandá-los “pagar”
dez apoios de frente quando escutava qualquer pequeno deslize vernacular,
embora ele próprio, o Carioca, vez ou outra escorregasse na sintaxe ou na
prosódia.
Assim,
decidido, Cearense ficou de prontidão para a primeira oportunidade e esta não
tardou a se apresentar. Estavam todos reunidos no cassino, como se denomina o
refeitório para oficiais, e no caso peculiar daquele batalhão de selva, também
para subtenentes e sargentos. Num dado momento, Cearense se dirige ao Sargento Gaúcho e pede educadamente que
lhe passe a manteiga, pronunciando o termo com o característico sotaque
nordestino, sincopando o “i” e fechando o ditongo decrescente: “mantêga”.
Carioca que há muito ansiava por um vacilo, não deixou por menos. Irrompeu em
estrepitosa gargalhada, como que vibrando pela chance de repreender o Cearense
em público: todo cearense é morta-fome, agora está comendo até os “is”; vai
pagar dez... Cearense não se faz de rogado e com a presença de espírito do
cabeça-chata rebate de pronto: para o Senhor ver o que é a convivência; de
tanto lhe ouvir vomitar “is” em “naiscimento”, achei que não ia fazer falta...
Seguiu-se
um silêncio torturante, em que todos, surpresos com a resposta categórica do
Cearense, aguardavam o pior, talvez até uma voz de prisão por parte do Carioca.
Este, boquiaberto, não conseguia se recuperar do inesperado revide e enquanto
começava a gaguejar uma tentativa de retaliação foi interrompido pelo Coronel
Mineiro, comandante do batalhão e admirador do Cearense, com quem costumava
bater longos papos em inglês, para não perder a fluência: esquece, Carioca;
deixa o Doutor em paz...
E,
como no Exército manda quem pode e obedece quem tem juízo, Carioca teve que
engolir a desfeita e a rotina voltou a dar as ordens na caserna.
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