Vilma Clóris de Carvalho
Ao abrir a
porta deparei-me com Zefa, que trabalhou para mim como faxineira, por quatro
anos. Abracei-a convidando-a para entrar.
Naquela
época, tinha a cabeça cheia de sonhos: não queria passar a vida sendo
doméstica, ia estudar para ser professora. Ganharia bom dinheiro, teria sua
casa e seria respeitada pelos conhecidos.
Após um
cafezinho, Zefa começou a contar sua história vivida desde que deixara de
trabalhar em minha casa.
Morando com
sua mãe num minúsculo casebre, nas proximidades de um barranco, procurou a
escola mais perto para frequentar o curso noturno de alfabetização de adultos.
Conseguiu quatro faxinas para fazer suas despesas, e foi vivendo, cansada e
desanimada. Chegava, muitas vezes, atrasada para as aulas e os professores
faltavam bastante. Estava nesta luta, há cinco semestres. Conhece as letras,
assina seu nome e ler com muita dificuldade. O mesmo acontece com quase todos
de sua turma. Aulas complicadas, com duração de trinta minutos ao fim dos quais
entra outro professor, que falará sobre novo assunto, até que cinco aulas por
noite sejam ministradas. Volta para casa confusa.
Zefa, você
está envelhecida pela dureza da vida que tem enfrentado, mas tem pouca idade. É
trabalhadora, honesta e conhece seu serviço. Precisa reformular sua vida.
Por onde
começar? Ainda não contei o pior. As chuvas que caíram na cidade fizeram nosso
casebre deslizar. Perdemos tudo. Saímos somente com a roupa do corpo.
Minha mãe, muito machucada, foi levada para um hospital onde
faleceu. Pedi para ficar na casa de uma amiga, por uns dias. Não tenho mais
sonhos. Só quero sobreviver.
Vamos
pensar as duas. Precisa trabalhar em uma casa onde possa dormir e ter as noites
livres para frequentar a escola. Não estou satisfeita com a faxineira que lhe
substituiu. Venha para cá e eu lhe ajudarei.
Posso vir
amanhã?
Terá que
fazer uma boa limpeza no quartinho dos fundos. Lá será sua casa.
Deus lhe
pague. Estarei aqui logo cedo, para lhe servir.
A visita de
Zefa levou-me a pensar, de modo especial, no grande problema do analfabetismo
no país. Foi um tema que sempre me preocupou. Vou tentar redigir um texto à
respeito. Quem sabe conseguirei fazê-lo chegar até aos meios competentes, e
assim, fazer alguma coisa pela educação.
Experiência e observação me levam a
pensar por que alguns estudantes decifram determinados códigos de inteligência
e se transformam em indivíduos empreendedores, capazes de debater ideias e
construir e construir conhecimentos. Quantos, embora com excelentes notas
escolares, não os decifram, têm visão limitada, repetem ideias.
Durante seis anos como estudante de medicina, trabalhei no período da
noite, num serviço social cujo superintendente em Paulo Freire. Minha função
era ministrar palestras para operários sobre temas referentes à saúde.
Supervisionada por Dr. Paulo, conhecido por sua luta contra o analfabetismo,
discutia com ele minha conduta e a reação dos ouvintes. Mudava muitas vezes a
estratégia procurando adequá-la às circunstâncias. Absorvi do mestre,
princípios importantes que me acompanharam por toda a carreira universitária e
facilitaram minha vida. Destaco a percepção da necessidade de despertar o
interesse do aprendiz e, levá-lo a sentir utilidade no que está aprendendo,
aplicando a situações novas.
Ao longo do tempo fui percebendo que o básico do aprendizado deve ser
processado antes e concomitante ao ensino fundamental: ensinar o indivíduo a
observar, registrar o que vê e pensar no que foi visto. É preciso pensar e para
pensar faz-se necessário perceber e sentir a realidade. É importante
exercitar-se para tal. Situações são criadas: sua casa fica longe da escola? No
trajeto tem árvores? Há crianças brincando na calçada? Qual a brincadeira que
as divertem? Dificilmente alguém respondia, pois não prestavam atenção. Olhavam
e não viam. Quando na universidade, criei outros tipos de exercício visando a
forma de estudo dirigido, com a mesma finalidade. Indicava aos estudantes,
capítulos de livros e distribuía cópias de separatas. Em anexo, os alunos
recebiam folhas com uma série de perguntas. Destas, a maioria tinha resposta
direta ou indireta no material distribuído, enquanto para as demais, se fazia
necessário pensar, comparar, deduzir, induzir, concluir e tantas outras
artimanhas que o cérebro pode fazer uso para obter respostas.
A toda hora nos surpreendemos com a capacidade do Homem moderno para
resolver problemas que há alguns anos atrás não existiam. Ele não está
recorrendo a estruturas novas, do ponto de vista genético, mas a capacidade
para resolver novos e complexos aspectos é o resultado de uma vida em
permanente desafio, exigindo uma interação cada vez mais diversificada, entre
estruturas do cérebro, relacionadas ao aprendizado, e determinados ambientes
nos quais se desenvolve o Homem atual.
O cérebro é um órgão muito mais plástico do que se imaginava e se
modifica com as entradas sensoriais que vem do meio ambiente. É por causa desta
contínua interação com o habitat que acontece o crescimento no Homo Sapiens.
A maneira como alguém percebe a realidade, vai influir na sua
capacidade de pensar e aprender, perceber e expressar o que percebeu. Captando
o que há no seu caminho, este fica outro e é percorrido de modo renovado. Com o
exercício, o entendimento vai se ampliando e se torna cada vez mais fácil
acompanhar as aulas e assimilar o conhecimento. O aluno vai ficando
independente para aprender, ultrapassando a matéria que lhe é apresentada.
No mundo atual sobra pouco espaço para se registrar a realidade e
pensar sobre ela, desenvolvendo a arte de vê-la com seus próprios olhos, base
para qualquer aprendizado.
Dona
Eremita, trouxe um suco de acerola. Escrevendo há tanto tempo deve estar
cansada.
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