Da. Maria costurando
suas fantasias e fantasmas
Um chamado para atendimento
domiciliar às 22hs., no dia 24 de dezembro; suspirei fundo pensando em não ir, mas
no íntimo sabia que poderia ser um pai, uma mãe de alguém desesperado, em uma noite
branca.
Entrei no apartamento
33, limpo e discretamente decorado natalino, cheiro de baunilha e pinho no ar; entrei na penumbra, desejei um feliz
natal.
Uma idosa vestida de
preto com a cuidadora, portadora de doença de Alzheimer;
um mundo desconhecido
à ambas. Uma estranha com uma estranha. Com um olhar
seco, onde esperava
ver uma lágrima e não encontrei‐a.
Interrompeu o silêncio,
uma ligação de Miami, dos filhos ao Caribe, "Nouveau Sea
Cruise", dizendo
à técnica que acendesse os castiçais, ligasse o som em o
Tannenbaum e a envolvesse
em seu chalé violáceo preferido e dissesse que mandavam um beijão.
Olhei seus olhos; foi
uma mirada no vazio e vi dor e gratidão, onde segurei suas
mãos que apertou- me
espasmodicamente, dizendo sem parar ecolálica: “a
camisa foi costurada”
, “a camisa foi costurada”, “a camisa foi costurada” ...
numa repetição ritmada
e irritante, mãos no ar, cozendo sem parar, em
movimentos infindáveis.
Compreendi que havia
sido chamado para acompanha-las na noite manjedoura,
onde a luz do poste
ao longe através da janela semiaberta era a estrela guia
descorada. Bateu o cuco
12 vezes. Foi servido uma fatia de bolo marrom e branco, preferido dos filhos, e
um espumante barato, frio.
Vislumbrei o meu futuro,
o de milhares de seres sós, em mesas natalinas enfeitadas
com esmero; senti a
solidão humana em meio a 7 bilhões no planeta. Vi com nitidez
a limitação da arte
e da ética da ciência médica, refletida na sordidez desumana.
Na cena exposta, eu
a vi costurando nossas vidas, em movimentos ritmados e
infindáveis, sem mesmo
uma peça tosca e rota nas mãos. Fechei a porta, respirei
enfim aliviado o frescor
da noite e vi uma coruja no poste de concreto em frente.
As luzes brilhantes
e coloridas da rua refletida nos vitraux. Senti no corpo e na
alma o peso da vida
e da finitude, da realidade cinzenta. Ao entrecruzar
com o primeiro passante
desconhecido, desejei-lhe do íntimo um Feliz
Natal!
P.S. Já antevia que
ao chegar atrasado à ceia familiar, seria submetido aos olhares
críticos de todos, exceto
da minha amada, um olhar fugidio, cúmplice e incondicional de amor, onde eu procuraria
abrigo.
Retardei o passo ao
andar nas irregulares calçadas curitibanas, rumo ao carro
estacionado e cantarolei
"Noite Feliz", sozinho, na noite colorida, que eu sabia