24 dezembro, 2017

NOITE FELIZ

Por:
Gilmar Mereb Chueire Calixto
Regional PARANÁ














Da. Maria costurando suas fantasias e fantasmas

Um chamado para atendimento domiciliar às 22hs., no dia 24 de dezembro; suspirei fundo pensando em não ir, mas no íntimo sabia que poderia ser um pai, uma mãe de alguém desesperado, em uma noite branca.

Entrei no apartamento 33, limpo e discretamente decorado natalino, cheiro de baunilha e  pinho no ar; entrei na penumbra, desejei um feliz natal.

Uma idosa vestida de preto com a cuidadora, portadora de doença de Alzheimer;
um mundo desconhecido à ambas. Uma estranha com uma estranha. Com um olhar
seco, onde esperava ver uma lágrima e não encontrei‐a.

Interrompeu o silêncio, uma ligação de Miami, dos filhos ao Caribe, "Nouveau Sea
Cruise", dizendo à técnica que acendesse os castiçais, ligasse o som em o
Tannenbaum e a envolvesse em seu chalé violáceo preferido e dissesse que mandavam um beijão.

Olhei seus olhos; foi uma mirada no vazio e vi dor e gratidão, onde segurei suas
mãos que apertou- me espasmodicamente, dizendo sem parar ecolálica: “a
camisa foi costurada” , “a camisa foi costurada”, “a camisa foi costurada” ...
numa repetição ritmada e irritante, mãos no ar, cozendo sem parar, em
movimentos infindáveis.

Compreendi que havia sido chamado para acompanha-las na noite manjedoura,
onde a luz do poste ao longe através da janela semiaberta era a estrela guia
descorada. Bateu o cuco 12 vezes. Foi servido uma fatia de bolo marrom e branco, preferido dos filhos, e um espumante barato, frio.

Vislumbrei o meu futuro, o de milhares de seres sós, em mesas natalinas enfeitadas
com esmero; senti a solidão humana em meio a 7 bilhões no planeta. Vi com nitidez
a limitação da arte e da ética da ciência médica, refletida na sordidez desumana.

Na cena exposta, eu a vi costurando nossas vidas, em movimentos ritmados e
infindáveis, sem mesmo uma peça tosca e rota nas mãos. Fechei a porta, respirei
enfim aliviado o frescor da noite e vi uma coruja no poste de concreto em frente.

As luzes brilhantes e coloridas da rua refletida nos vitraux. Senti no corpo e na
alma o peso da vida e da finitude, da realidade cinzenta. Ao entrecruzar
com o primeiro passante desconhecido, desejei-lhe do íntimo um Feliz
Natal!

P.S. Já antevia que ao chegar atrasado à ceia familiar, seria submetido aos olhares
críticos de todos, exceto da minha amada, um olhar fugidio, cúmplice e incondicional de amor, onde eu procuraria abrigo.

Retardei o passo ao andar nas irregulares calçadas curitibanas, rumo ao carro
estacionado e cantarolei "Noite Feliz", sozinho, na noite colorida, que eu sabia
agora ser cinza.



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