Ildo Simões Ramos
Regional BAHIA
E-mail: ildosimoes@uol.com.br
Entrado na
casa dos enta, começo a render-me à
fila dos cartões de crédito, dos planos de saúde, dos passes livres para as
indefectíveis pongas nos coletivos dos motoristas apressados. O último
esculápio com quem me consultei, nos quinze minutos que recomenda a Organização
Mundial de Saúde, afirmou sem me olhar nos olhos, onde estavam as marcas da traição
e da mentira, que eu tinha uma saúde de ferro, meus dados pressóricos estavam
ótimos. Iria passar apenas uma série de exames de rotina e me recomendava fazer
umas caminhadas que eram a coqueluche do momento. A lista de exames perdia um
pouco para os volumes de meu Pequeno Dicionário de Língua Portuguesa o que
começou por desencorajar-me. Sem mexer um músculo facial e sem demonstrar
dúvidas quanto às recomendações médicas, saí daquele consumitório sentindo-me
com a vida por um fio. Restavam-me as caminhadas. Parti pras caminhadas
matinais, por minha velha e querida Cidade do Salvador na tentativa dum
reencontro nostálgico. Não gosto do termo porque nostalgia sempre me dá idéia
de coisa antiga, ultrapassada, estradas sem volta. Mas já que me foi de há muito
a adolescência fui curtir a jovem senhora de pouco mais de quatrocentos anos.
Temos, portanto, muito que recordar. Caminho por suas ruas de outrora passeios
bem cuidados, varridos, lavados e até, por vezes, perfumados pra tirar o odor
da necessidade fisiológica do cãozinho desavisado que deixou sua marca por ali.
Na esquina um edifício modernoso, de arquitetura, cujo autor não deve ter
empunhado mais que uma colher de pedreiro. Mais adiante uma ruela onde sofri
minha primeira desilusão amorosa. Faz tanto tempo que sequer me recordo da face
da suposta doce amada. Só me lembro de ter amargado uma ressaca homérica de
cachaça e coca-cola.
É um pouco
mais que madrugada e o silêncio já foi rompido por coletivo fumacento,
motorista de maus bofes que passa tirando fino nas minhas pernas já não tão
ágeis. Ouço uma voz que a princípio não me dou conta. Passados alguns segundos
repete-se a mesma indagação. Miro em volta e não há, no momento, vivalma. Tento
testar-me a percepção e, parece, as
coisas estão nos seus devidos lugares. Se não estou sendo vítima de
alucinações a voz é de minha cidade. Lembro-me de ter lido nalgum periódico que
as cidades são organismos vivos. Então é isto. A voz é da minha cidade. Procuro
responder a primeira indagação que é sobre a perplexidade de tanta mudança nas
suas artérias. A partir daí estabelecemos um salutar diálogo meio surrealista,
é claro, porque dava a entender pelas pessoas que iam cruzando comigo, que
alguns neurônios tinham escapado de minha cachola. Não dei tratos à bola e fui
dando asas à minha imaginação. Perguntei pelas marinetes, pelos bondes da linha
circular, alguns números ainda guardados na memória, que diziam do destino:
Mata Escura, Fazenda Garcia, Ribeira, Barra.
- Estão nos
álbuns de fotografias dos saudosistas. Estou sofrendo as mesmas doenças de que
certamente você está acometido e não me resta fazer muita coisa. Não tenho
médicos, mas paisagistas, arquitetos que cortam minhas entranhas com
retroescavadeiras e vão levando, Deus sabe pra onde os meus vestidos de
menina-moça, meus sapatinhos de cristal
de Cinderela e, pior, não vejo no fim dos diversos túneis que escavaram, uma
luz onde possa vislumbrar um príncipe que num beijo mágico venha me despertar
desta letargia. Aos olhos dos desavisados estou sendo rejuvenescida, sem se
darem conta de que estou perdendo a fonte de aconchego dos meus diletos filhos
de que você é um exemplo que estou perdendo.
Falo de
minha última consulta, da mentira estampada na cara do médico que me atendeu,
conto as mazelas dos desgovernos que nos atormentam. Digo dos meus cabelos
brancos, das pernas a esta altura meio trôpegas pelo que peço que me deixe
sentar num dos bancos da pracinha à minha frente que ainda guarda uma corbeille e fitinhas de recente
inauguração. Confesso que não fui feliz no elogio que fiz do logradouro público
que agora mitiga o meu cansaço.
- Fique à
vontade. Onde está este banquinho era um pé de goiabeira em que alguns sanhaços
matavam a fome devorando seus suculentos frutos e descansavam de seu vôo às
vezes fatigante. Ainda me presenteavam com uns gorjeios meio desafinados, mas
eu ficava feliz. Quem não gosta da voz da Natureza? Alguns moleques que
voltavam da escola às vezes lhe atiravam pedras de baleadeira, mas pra minha
felicidade tinham péssima pontaria e os passaricos tinham asas velozes. Eu ria e eles se assustavam pensando ser alma
do outro mundo e saiam em desabalada carreira.
Longe de
mim, magoar minha cidade, mas a pracinha e seu banco de design moderno tinham
aliviado as contrações dos meus músculos fatigados. Deixei que ela completasse
a queixa e fui andando. Chego à beira mar e olho aquele mundão de água a
transformar-se em ondas e quebrar na praia. Fico indignado porque com os
sargaços deixados pela maré que agora retorna em vazante, vem uma garrafa
plástica certamente deixada em alto-mar por desavisado navegante. O mar tem uma
cor indefinida. Não me sinto à vontade pra descrever o seu matiz. Fico entre
perplexo e indignado. De novo me chegam aos ouvidos um murmúrio de voz que de
imediato a reconheço.
- O mar /
quando quebra na praia / é bonito / é bonito.
- Sei que
está pensando como hoje eu penso. Pedir ao vate cantador que mude o tempo do
verbo. Já me levaram o verde, cortaram minhas entranhas, trocaram à revelia
meus vistosos trajes de que tanto me orgulhava.
Confesso que estou apreensiva, pois um dia podem entender de me levar a
alma.
Peço
socorro a Casemiro e retorno pra casa a recitar-lhe uns versos em respeitoso
silêncio “ Ah que saudades eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância
querida...”
***
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