Paulino Vergetti Neto
Morávamos em uma casinha bem simples. Uma casinha
de taipa, até grande. Possuía seis quartos. Morávamos os três: papai, mamãe e
eu, o filho caçula de uma leva de onze. Mamãe era parideira, mais parecia com
uma preá. Os outros viviam para as bandas de São Paulo. Todos bem, casados e
com seus empregos. Sempre fui apegado ao sertão, tanto, que preferi permanecer
com os velhos na mesma casinha aonde havia nascido há dezoito anos. Cacimbinhas
situava-se no começo do sertão alagoano. Quente, seco, mas uma terra onde
ninguém morria de fome. Dividíamos o pouco que tínhamos, e, quando faltava a
mistura, não faltava os preás das palmas nem as codornas, nem as perdizes.
Bum, houve um estrondo! Ouvi-o sem muita certeza do que se tratava. Um tiro? O barulho tornou-se maior porque aconteceu dentro de casa, na saleta, onde pai gostava de dormir à noite, por causa do calor infernal que fazia quando íamos para o quarto. Estirava-se no chão, sobre uma esteira de Peri-Peri e punha-se a roncar até o dia raiar. Antes mesmo, no escuro, já estava chamando o gado para "desleitar" as vacas paridas. Uma vida bem campesina, a nossa, cheia do telúrico e do saudoso. O resto da família estava longe de nós...
Pensei que fosse o estouro de uma bomba daquelas que se usava nos festejos juninos. Papai tinha ido caçar perdiz na fazenda do velho Manfredo. Uma atividade combatida pelo fazendeiro a ferro e fogo. Trouxe no bornal seis perdizes. Em tempos de seca, isso representava um banquete. Ele mesmo as despenou e tratou. Sabia bem esse ofício. Caçador inveterado. Mas quem temperava era mamãe. Nisso ele fora vencido por ela. Amanhã, domingo, coincidia com seu aniversário. Não havia ido caçar à toa. A garrafa de Cachaça de Cabeça já estava reservada. Encomendara a seu Herculano há uns dois meses. Nunca vi papai embriagado. Nem tampouco permitir que ninguém se embriagasse lá em casa, nem na fazenda.
A casa estava escura. Sentia-se um fedor de pólvora queimada. Meu candeeiro tremeluzia, quase apagando, trepado na parede do meu quarto. Gritei pra mãe e ela não respondeu. Não sei onde, mais achei coragem e me levantei. Lá se ia um medroso e uma luz imprestável, a passos lentos, na direção do outro quarto. Quando alcancei o destino, vi-a sentada na cama passando a mão na cara, sem saber direito o que havia acontecido. Estava tonta. Seu candeeiro ainda estava forte. Subia um tufo de fumaça que ardia a venta da gente. Troquei o meu por ele e saímos os dois até a sala para encontrar o corpo de pai. Não bastasse aquela escuridão toda do tempo, meu olhos começaram a se encher de lágrimas e mais turva ainda ficavam as imagens da casa. Olhei para o terreiro, por cima da janela, e vi que o dia queria nascer. O horizonte estava arroxeado e já se ouvia os pássaros cantando. Senti um ventinho morno entrando em casa.
Quem
primeiro viu o corpo estirado e com a cabeça coberta fui eu. A parede estava
toda esburacada e a espingarda no chão. Óxente,
pai deitado e a espingarda no chão? Que diacho de crime foi esse? Perguntei de
mim para mim mesmo. Notei que a cena que vira estava estranha, mal desenhada,
incomum. Me agachei e virei o corpo de pai. Trazia na face dois boticões de olhos que
dava medo. Estava vivo e fedendo a merda. Poxa vida, agora que percebi que o
que havia acontecido fora um disparo acidental da soca-soca de pai e a vítima
tinha sido a parede.
- Mas pai, o senhor se borrou de medo? Que homem é o senhor?
- Respeita teu pai, menino, vai se deitar e me
deixa aqui com ele. Eu resolvo isso já!
Obedeci-o. Mãe, uma mulher bonita, sertaneja com
cara de índia, decidida, corajosa. Não conhecia o medo. Do quarto ouvi quando
pai deu um grito e saltou em pé no canto da sala, justamente na parede que
dividia com meu quarto. Ouvi mãe chamá-lo de cabra frouxo e dá-lhe uns
solavancos. Pus o lençol na boca para não soltar uma gargalhada e depois nada
mais vi da confusão.
O dia amanheceu, ele lavou-se e foi ao curral fazer a ordenha das leiteiras e mãe foi pôr lenha no fogão e tacar fogo. Atrelei os bois de carro e fui buscar a água do dia para lavar as coisas de casa. Tinha que andar uns seis quilômetros até chegar no poço de água doce, uns dos poucos na região. Quando retornei, de fora senti o cheiro das perdizes sendo fritadas, o leite no fogo quase fervendo e pai acocorado do lado de fora de casa, sob uma das biqueiras, fumando seu cachimbo fedorento. Nem olhei. Ele sabia que estava com a cara olhando para o outro lado para que não visse meu sorriso. Quando fui passando com os bois pelo terreiro, ouvi quando disse:
- Agora você vá dá com a língua
nos dentes e contar o que houve aqui, viu? Dou-lhe uma surra daquelas.
Daquelas
que sempre jurou e que nunca deu. Não teve jeito, soltei os boi e a gargalhada
e corri para o mato perto de casa. Terminou por sorrir comigo, ele e mãe. A
cachaçada aconteceu e o assunto foi pai. Mãe contou tudo, tim-tim por tim-tim.
Mãe era o homem da casa!
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