19 agosto, 2017

ZEZINHO DA REQUINTA

Por:
Waldênio Florêncio Porto
Regional PERNAMBUCO











Procurei encontrar-te. Pergunto aqui, pergunto acolá. Indaguei do tempo. Ao ouvir o frevo lembrei-me de ti.. Você avistou Zezinho? Quem? O da requinta, meu amigo do Ginásio de Caruaru, do tempo de Luiz Pessoa. Aquele quieto, calado, de pouco falar. Mas que se transformava no Carnaval e sustentava na resposta pianística, toda a orquestra de metais de "Motoristas", ao executar o frevo "Fogão". Eu ficava junto dele, só para ouvir o som estridente da requinta contrapontar e, muitas vezes suplantar, os trompetes e trombones de vara. Você está agora se lembrando? Ali ele era absoluto e total. Não o aluno bisonho de Zé Leão e Silvestre Guimarães, que quase se escondia atrás da banca Gerdau.  Só se sentia mesmo a vontade com Machadinho, professor de música, maestro e seu comparsa. 

Você avistou Zezinho da requinta?

Não se continha. Acompanhava, em volteios com o instrumento, as evoluções dos passistas, como se, de seu canto, dentro da orquestra, pisasse as pedras do calçamento irregular em arqueios requebros coreográficos do frevo que saía do seu sopro e da sua alma.

Os clarins anunciantes do início do frevo criam a expectativa da folia. A batida alta do surdo, a metralha dos tarôs. A impaciência do porta-estandarte, que se inteiriçava todinho para começar os volteios. Machadinho na frente da orquestra. Fazia do trombone uma batuta. Estalava nos dedos, mais visto no gesto que escutado em meio a balbúrdia. Contava, um, dois, três. Levava à boca o instrumento. Estrugia, então, com o fragor de mil bombardas, o frevo, retido, contido, amado, desejado e festejado. Um desatino frenético de passistas, isolados em exibições individuais, abraçados como em dança de roda ou enlaçados em braçadas violentas da onda, que tudo enfrentava, derrubava e espantava, a lembrar os primitivos capoeiristas que desenharam a coreografia primeira do frevo nas ruas do Recife.

Mas, você avistou Zezinho da requinta?

Descubro-me no meio de uma orquestra de frevo, no tempo agora, no Recife Antigo. Deixo-me magnetizar pela música forte que surgiu naquelas mesmas ruas de pedras polidas, de calçamento riscado pelos trilhos da Tramways. Meus olhos enxergam emoções múltiplas condensadas no instante feérico, colorido, que a vida não desgastou. Meu corpo obedece às sístoles e diástoles do ritmo alucinante, que me desprende do momento presente e faz viajar nas imprevisíveis rotas da fantasia e do devaneio. Penetro, quase em transe na imaterialidade de um sonho lindo, desligado e liberto do mundo. Acordo na felicidade do momento fugaz, que se faz perene no infinito da satisfação plena. As pernas se tornam leves, flexíveis. Ensaiam passos, recuperam esquecidos meneios, se cruzam em tesouras, arqueiam, fazem o miudinho, se equilibram, fiadas na sombrinha que agito nos braços, sombrinha multicor, cheia de pingentes, que passa de uma mão a outra, entre as pernas, e sobe ao alto em grito de alegria.

Levado e arrastado pela emoção chego a frente da orquestra para me encontrar com dez trombones de vara, dourando a luz das gambiarras, os movimentos ritmicos das notas frevísticas se espalhando no ar. Logo atrás outro tanto de trompetes levanta seus bocais, como se fossem golfinhos brincantes naquele mar de música alucinógena. Aparecem na terceira fila os saxes, fazendo a parte pianística. São tantos e tão harmoniosos que encantam pela feliz combinação tonal. Quatro tubas, com enormes bocas, solam e sublinham o frevo. E uma delícia ficar junto deles e ouvir a marcação alta das notas graves. Depois os surdos e os tarôs completam o esbanjamento de alegria que mexe com crianças e adultos. Aquelas revolvem o inusitado da vida ainda por conhecer, estes o recordar de emoções extintas ou esperanças renováveis.

Atrás a multidão respeitosa, na distância protetora dos músicos, sem necessidade de cordões de isolamento, se esbaldando, na música-terra. Que prende, atrai e retém. Culto à extroversão e, contraditoriamente, a introspecção mais íntima. Catarse coletiva.

Não avisto Zezinho da requinta. Nem as clarinetas que enxameavam as orquestras de frevo de antigamente. Desapareceram, foram banidas, sumiram. Tampouco me encontro com Machadinho, o porta-estandarte Geleia, Chico Nunes, animador e presidente de Motoristas, Chico Porto, o carnavalesco Rei Momo, o Professor Zé Elias e Olímpio, que constelavam o carnaval de Caruaru.

Com meu irmão Wladimir, que mora em São Paulo e veio para o carnaval, ainda avisto, de longe, numa esquina, Zezinho da requinta, em meio aos saxes, instrumento para o alto, no estrídulo tocar. Corremos ao seu encontro, mas desaparece na miragem da nossa imaginação, que só o carnaval nos dá.

Sou tomado pelo braço da primeira morena e caio no passo, adolescente e com aquele riso franco quase desaprendido, ficado lá atrás.



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