Andrea Pio de Abreu
Regional SÃO PAULO
Há muitos anos ouvi uma história interessante.
Havia um mendigo que vivia numa praça.
Não era qualquer mendigo, daqueles que pediam esmolas e nada tinham a dizer.
Era um mendigo com concepções, que vivia discursando uma mesma ideia por anos e
anos. Era um idealista, revoltado com as instituições públicas. Um belo dia,
certo senhor – que sempre passava pela praça – perguntou: Esses anos todos você
repete as mesmas coisas e ninguém presta atenção. Ainda assim, você acredita
que pode modificar as pessoas? O mendigo então olhou para ele e respondeu:
Posso não modificar as pessoas meu senhor... mas no dia em que parar de falar,
elas é que terão me modificado.
Gostava tanto dessa história que a repeti inúmeras vezes, desde o
período escolar até a faculdade... mal sabia o tal mendigo que mesmo não
conseguindo convencer ninguém, pelo menos havia conseguido transformar a minha
mente, numa grande praça.
Mas um belo dia, durante a residência de clínica, diante de
determinada situação, eu me perguntei: Puxa vida... já atingi tantos objetivos
nesses anos todos enquanto este mendigo fica lá parado na praça falando as
mesmas coisas? Ele não evoluiu, não conseguiu nada com isso, não fez qualquer
pessoa mudar, não adquiriu outros conhecimentos... e eu fico aqui
glorificando-o? Pensando bem, será que é possível evoluir mantendo o mesmo
ideal? A partir de hoje, não conto mais essa história.
Não contei mais... até hoje.
Paradoxalmente, durante todos esses anos também gostava muito de
uma música de Raul Seixas, que dizia mais ou menos assim: “Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante,
do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Ah... eu também achava isso o máximo. E diante das minhas
mudanças conceituais levadas pelo amadurecimento, sempre pensava nessa música
como um incentivo ao seguinte pensamento: Qual o problema em mudarmos? Que mal
há em revermos nossos conceitos e simplesmente mudarmos nossas ideias? Por que
nossos sonhos não podem simplesmente amadurecer com a gente?
Até que um dia – há poucos anos – ao ouvir essa música
novamente... simplesmente deixei de gostar. Como assim ser uma metamorfose
ambulante? Que ideais e conceitos – realmente verdadeiros – sobrevivem às
constantes mudanças?
Não seriam então todos eles superficiais demais? Influenciáveis
demais? Frágeis demais? Percebi que ao longo dos anos, essa música na verdade
não tinha nada a ver com minha personalidade. Costumo manter meus ideais e
conceitos até mais do que gostaria.
Não a cantei mais... até hoje.
Então, vejo-me aqui, entre o persistente mendigo da praça e o
mutável e saudoso Raul. Se um contraria o outro, por que não concordo com
ambos? Sinto-me esse mendigo quando penso de forma conservadora na prática
médica. Podem surgir inúmeras mudanças, inúmeros avanços, da nanotecnologia à
cirurgia robótica (conquistas certamente preciosas), mas são todos esses
complementos ao que há de mais antigo no dia a dia do médico clínico: a
anamnese, o exame clínico e a relação médico-paciente. Eu me transformo nesse
mendigo todas as vezes em que um paciente vem ao consultório com uma lista de
exames para serem solicitados. Ele mesmo não quer ser examinado... já se
consultou com o “Dr. Google”.
Eu me transformo nesse mendigo todas as vezes em que um paciente
hipertenso reclama da não resolutividade dos anti-hipertensivos. Ele quer mais
remédios, mas não se esforça para diminuir o sal da alimentação ou tomar os
medicamentos de forma regular. Eu me transformo nesse mendigo todas as vezes em
que um paciente chega dizendo que tomou “os medicamentos da propaganda”, ou
aqueles receitados na farmácia, convertendo-se à banalização da terapêutica
(hoje as farmácias parecem lojas de conveniência, muito mais do que farmácias).
Sim... em todas estas e outras inúmeras situações eu faço discurso... e não
importa quanto tempo passe, quantas mudanças ocorram: eu não vou mudar.
Mas sinto-me também a “metamorfose ambulante” de Raul em outras
questões da prática médica. Há anos, durante minha formação, achava errado um
médico usar o computador no consultório, em vez do papel e caneta. Mudei. Hoje
sei que a informatização da medicina não aniquila a relação médico-paciente.
Ela também é um complemento que pode vir a ajudar... e ainda minimiza o
problema de não entendermos a letra de vários colegas. Há anos considerava
errado que os pacientes buscassem informações sobre sua doença na internet (Dr.
Google). Hoje acho válido – desde que já não venham com o diagnóstico pronto e
a lista de exames a serem solicitados. Mas que, ao contrário, venham com maior
noção de sua doença e dúvidas, tendo ciência do quanto é importante se tratar
adequadamente.
Há anos era totalmente contra o uso de e-mails e celulares para me comunicar com os pacientes. Hoje acho que são
importantes (com certo limite, logicamente), desde que eles venham nas
consultas marcadas. Não está errado terem dúvidas em determinadas situações,
que os impossibilite de virem ao consultório. Assim, nestas e muitas outras
situações realmente mudei. E continuo mudando, adaptando-me a este contexto
sempre mutável da prática médica. Neste sentido, como tudo na vida, analisando
de um extremo ao outro vejo que a melhor opção é não ser radical.
Mudar de ideias sem abrir mão dos ideais. Mudar condutas sem abrir
mão dos valores. Mudarmos nós mesmos... sem perdermos nossa verdadeira
essência. Somos todos um pouco mendigos e um pouco Raul. Aceitamos mudar... mas
nem tanto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por participar.