Arquimedes Viegas Vale
Regional MARANHÃO
Email: arquivale@uol.com.br
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Olhando para suas
mamas, já ressequidas e imprestáveis, Kaburá decidiu que já era hora de morrer.
Havia completado 160 anos e perdido o seu último jogo. Além do mais, a rocha em
que os marcava já estava cheia. Naquela perdida restinga do universo, ao nascer,
cada um ganhava uma pedra para marcar a sua idade, o que faziam no aniversário
com dois traços curtos paralelos horizontais cruzando-se com dois verticais,
formando o “jogo da velha”. Antes dos 12
anos, quando assumiam a obrigação, estes litoglifos eram feitos pela aldeã mais
velha.
O jogo era solitário e o resultado
íntimo. Cada mão escolhia um sinal e se tornavam competidoras. Ao final a
ganhadora se punha na consciência e uma longa reflexão julgava a sua
importância pessoal de viver ou a importância coletiva de morrer.
Do tempo e espaço que se dissipavam
nas sombras da existência, restavam fragmentos irregulares de um povo brotado
dos paredões onde a natureza guardava a sua memória. Permaneciam ali porque a
balsa que os atravessaria para a outra margem do lago, na qual estavam
plantando pedras achatadas circulares para a germinação de ideias, raciocínio,
habilidades e conhecimento, naufragou e
o seu comandante preferiu morrer no fundo das águas e ele era o único que sabia
fazer balsas de junco e o único que conhecia o rumo da navegação pois
recebera mapas e projetos feitos nas
nuvens, de homens com grandes asas douradas que vieram do espaço ignoto numa
tempestade com trovões e relâmpagos.
Viver era livre e morrer era
escolha. Assim, Kaburá sentia da decadência do seu povo um cheiro sinistro de
extinção, como tinham se extinguido quase todos os animais e muitas plantas
frutíferas, única reserva de subsistência. Os poucos animais que ainda sobreviviam
estavam degenerados, deformados e com partes do corpo apodrecida. Nasceram de aglomerados
genéticos impróprios, por espécies diferentes, fora das leis naturais e
desequilíbrio ambiental, originando monstruosas criaturas inominadas. O lago,
que margeava as proximidades, escasso em produção, tinha apenas peixes
disformes, com ossos expostos e carne enrijecida inutilizável e estes, por
final, penetravam em blocos de lama que ao se tornarem pedra carregavam a sua
silhueta para a eternidade. Pela pobreza do solo petrificado, as sementes
necessitavam de nutrientes humanos para germinar.
As brumas da madrugada se dissipavam
na palidez dos primeiros raios do sol, que vinha diminuindo a cada manhã,
quando Kaburá respirou as suas últimas doses de oxigênio puríssimo, filtrado
pelos fungos do teto da caverna e penetrou no mato para iniciar o seu ritual.
Começou a juntar sementes de frutas, e fez um monte que lhe chegou à altura do
sexo. Aí sim, passou a engoli-las começando pelas maiores, uma a uma,
pacientemente, até que as últimas, mesmo sendo as menores, chegassem a entupir
a sua garganta. Foi-se toda a coleta a encher-lhe o canal digestório que
deveria ser fechado na entrada e na saída. Pesada e pesarosa arrastou-se como
um réptil agonizante até ao lago para pegar a lama e executar esse hermetismo.
Sentou-se na pedra mais alta e pôs-se à paciência para que se cumprisse o
processo de transferência da existência.
Prendia-se a tradição à digestão das
sementes em ambiente orgânico pela esterilidade da superfície do solo e como
não existiam mais animais que as espalhassem tinha que ser feita por humanos em
processo de decomposição viva que, para maior eficiência da semeadura,
explodiam jogando as sementes germinadas em área muito mais extensa.
Pela intuição temporal, mesmo sem
marcação astrológica, Kaburá achou que já estava além do necessário. Precisava
fragmentar-se para quitar a sua dívida de jogo,
contribuindo com novas plantas frutíferas nascendo e cedendo seus ossos
para ruminação das férreas mandíbulas dos
monstrengos vertebrados aquáticos que dominavam o lago.
Sua pele começou a engrossar,
cozinhar no vapor das madrugadas e cair aos pedaços, que ficavam aos seus pés,
sem ao menos uma formiga para degradá-los. Os seus braços estavam delindo,
puxados para o chão, numa consistência gelatinosa, dobrando-se como uma fita ao
vento. A boca crescia e a lama que a ocluía, já petrificada, trincou com
estalos agudos e se esfarelou, caindo junto com as últimas sementes engolidas e
não germinadas.
Suas orelhas cresciam como grandes
folhas de taioba e antes que caíssem pode ouvir sons desconhecidos e
assustadoramente fortes para aquele mundo onde o silencio só se quebrava com
pedras.
A dor não fazia parte deste
passamento optativo e necessário, mas Kaburá começou a senti-la. A princípio
não sabia de onde vinha mas apalpou-se.com os seus rudes sentidos e percebeu
que vinha dos olhos que cresciam, cresciam e já estavam do tamanho das bolas de
pedra deixadas pelos homens de asas douradas.
Descerrou as pesadas pálpebras e
seus grandes olhos puderam ver muito longe. A outra margem do lago, onde foi
plantada a civilização. Num último esforço, Kaburá, libertou a idade que estava
presa na sua pedra e deitou-se ao solo já na forma de um monólito.
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