14 outubro, 2017

CACHORRO VADIO

Por:
Amaury Braga Dantas
Regional PARÁ
E-mail:  amaurybd@ufpa.br












Naquele interior de Curuçá o roçado e a casa de farinha eram comunitários. Depois de plantar, esperar o tempo de colher, molhar, coar, passar no crivo e torrar, finalmente o produto era agasalhado em paneiros que iam sendo estocados - farinha de mandioca.

Estando o tio para Belém, a tar de capitar, por ora, naquela casa de enchimento, chão batido e coberta de palha, de apenas sala, quarto e cozinha e um corredor que ligava a sala até a cozinha, o lugar mais seguro para guardar a farinha apurada era mesmo o quarto, e isto, responsabilidade maior da velha Clemência.

Explique-se, a segurança tornava-se necessária, não por causa de ladrões que não existiam, porém em função dos bichos: as galinhas, os porcos, os cachorros, os pintos... que podiam entrar e quando, sem mais aquela, lá estavam eles, ciscando ou chafurdando a farinha nova.

Naquela casa dormiam a velha Clemência, mais de oitenta anos, e já completamente cega, ou quase, já que dizia ainda enxergar - uns vurto mar e mar - e sua neta Mundica, cabocla de dezenove anos, por demais esperta, aviciada em trepar em goiabeira e acostumada a tomar banho sem calça na beira do igarapé.

Depois da lida diária, jornada rústica e cansativa, quando a noite caia, a velha atava sua rede no corredor, ficava pitando seu cachimbo para chamar o sono, e a Mundica se entocava no quarto, por cima dos paneiros de farinha para que pudesse dormir.

Deixa estar que um tal de Rubinalvo - conforme já estavam acostumados e de combina - esperava que a velha Clemência começasse a ressonar, passava por debaixo da rede da  velha e ia ter com a Mundica por riba dos paneiros de farinha.

Várias vezes aquela arrumação se repetira e sempre dando certo. Depois do serviço feito, Rubinalvo e Mundica chegavam até a sonhar completamente relaxados. Mas, antes que o dia clareasse, assim que o primeiro galo cantava, Mundica acordava o Rubinalvo e ele, olha, pernas pra que te quero, fazia o caminho da roça.

E não é que a velha Clemência começou a desconfiar que havia bicho comendo da farinha nova?

- Mundica! Eu já te disse. Olha, pequena, tu me fica de olho nesta farinha que eu tenho na ideia que tem cachorro comendo.

- Oche! Que bicho nada, vó! Então eu não to vendo? Não tem cachorro nenhum... Druma é que é!

Mesmo com a negativa da neta, a velha Clemência, insistente na sua desconfiança, resolveu se prevenir: preparou uma vara de cipó verde bem resistente e jurou que daria, mais dia menos dia, uma lição naquele cachorro larápio.

Dormiu na rede com o corpo teso, perna esticada e com o cipó agarrado no peito, seguro com as duas mãos.

Mal a noite caiu e a velha Clemência acordou com o barulho no quarto.

- Mundica! Te acorda e enxota esse cachorro que ele tá comendo da farinha!

- Mas, que cachorro nada. Druma, vó, druma que não tem cachorro nenhum!

Bem que a velha tentou conciliar o sono mas não conseguiu. Ficou alerta. Já no caminho de volta, quando Rubinalvo foi passar por debaixo da rede, esbarrou de leve. Foi o suficiente. 

De pronto a velha, no rumo certeiro, deu duas lambadas em riba do lombo de Rubinalvo que chega estalaram.

Rubinalvo, como não podia gritar, acossado pela situação e sentindo o cipó ardendo na costa emitiu apenas um grunido: Hhuuummmmmmmmmmm!!!!

E a velha ainda deu mais uma lambada que acabou pegando pelas pernas.

- Eu não te disse, Mundica?! Eu sabia que tinha cachorro comendo desta farinha. Dei-lhe três cipoadas, Este um não vorta mais. Olha este corno vai com a boca tão cheia de farinha, que nem late. Ah! Cachorro vadio!!


E a Mundica, sonsa, drumindo.


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