Amaury Braga Dantas
Regional PARÁ
E-mail: amaurybd@ufpa.br
Naquele interior de Curuçá o roçado e a casa de
farinha eram comunitários. Depois de plantar, esperar o tempo de colher, molhar,
coar, passar no crivo e torrar, finalmente o produto era agasalhado em paneiros
que iam sendo estocados - farinha de mandioca.
Estando o tio para Belém, a tar de capitar, por ora,
naquela casa de enchimento, chão batido e coberta de palha, de apenas sala,
quarto e cozinha e um corredor que ligava a sala até a cozinha, o lugar mais
seguro para guardar a farinha apurada era mesmo o quarto, e isto,
responsabilidade maior da velha Clemência.
Explique-se, a segurança tornava-se necessária, não
por causa de ladrões que não existiam, porém em função dos bichos: as galinhas,
os porcos, os cachorros, os pintos... que podiam entrar e quando, sem mais
aquela, lá estavam eles, ciscando ou chafurdando a farinha nova.
Naquela casa dormiam a velha Clemência, mais de
oitenta anos, e já completamente cega, ou quase, já que dizia ainda enxergar -
uns vurto mar e mar - e sua neta Mundica, cabocla de dezenove anos, por demais
esperta, aviciada em trepar em goiabeira e acostumada a tomar banho sem calça
na beira do igarapé.
Depois da lida diária, jornada rústica e cansativa,
quando a noite caia, a velha atava sua rede no corredor, ficava pitando seu
cachimbo para chamar o sono, e a Mundica se entocava no quarto, por cima dos
paneiros de farinha para que pudesse dormir.
Deixa estar que um tal de Rubinalvo - conforme já
estavam acostumados e de combina - esperava que a velha Clemência começasse a
ressonar, passava por debaixo da rede da
velha e ia ter com a Mundica por riba dos paneiros de farinha.
Várias vezes aquela arrumação se repetira e sempre
dando certo. Depois do serviço feito, Rubinalvo e Mundica chegavam até a sonhar
completamente relaxados. Mas, antes que o dia clareasse, assim que o primeiro
galo cantava, Mundica acordava o Rubinalvo e ele, olha, pernas pra que te
quero, fazia o caminho da roça.
E não é que a velha Clemência começou a desconfiar
que havia bicho comendo da farinha nova?
- Mundica! Eu já te disse. Olha, pequena, tu me
fica de olho nesta farinha que eu tenho na ideia que tem cachorro comendo.
- Oche! Que bicho nada, vó! Então eu não to vendo?
Não tem cachorro nenhum... Druma é que é!
Mesmo com a negativa da neta, a velha Clemência,
insistente na sua desconfiança, resolveu se prevenir: preparou uma vara de cipó
verde bem resistente e jurou que daria, mais dia menos dia, uma lição naquele
cachorro larápio.
Dormiu na rede com o corpo teso, perna esticada e com
o cipó agarrado no peito, seguro com as duas mãos.
Mal a noite caiu e a velha Clemência acordou com o
barulho no quarto.
- Mundica! Te acorda e enxota esse cachorro que ele
tá comendo da farinha!
- Mas, que cachorro nada. Druma, vó, druma que não
tem cachorro nenhum!
Bem que a velha tentou conciliar o sono mas não
conseguiu. Ficou alerta. Já no caminho de volta, quando Rubinalvo foi passar
por debaixo da rede, esbarrou de leve. Foi o suficiente.
De pronto a velha, no
rumo certeiro, deu duas lambadas em riba do lombo de Rubinalvo que chega
estalaram.
Rubinalvo, como não podia gritar, acossado pela
situação e sentindo o cipó ardendo na costa emitiu apenas um grunido:
Hhuuummmmmmmmmmm!!!!
E a velha ainda deu mais uma lambada que acabou
pegando pelas pernas.
- Eu não te disse, Mundica?! Eu sabia que tinha
cachorro comendo desta farinha. Dei-lhe três cipoadas, Este um não vorta mais.
Olha este corno vai com a boca tão cheia de farinha, que nem late. Ah! Cachorro
vadio!!
E a Mundica, sonsa, drumindo.
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