31 agosto, 2017

DÓI

Por:
Luiz Ayrton Santos Junior
Regional Piauí














Há sempre um pouco de dor no humor
Sempre um riso inimigo que manda flores
E uma água gelada que queima
O fogo dos amores

Há sempre gente crente no assassino
Prostituta que se apaixona
Velas que não apagam
Trilhas sem destino

Inventaram até uma rapadura que não engorda
(navio que não é preso em corda)

Há sempre uma pimenta que é doce
Sempre uma folha seca no inverno
Sentimentos desmedidos e complexos
Também sempre resta no final da gargalhada
Uma lágrima

E há sempre um tigre banguela
Uma moça linda na favela
Um mamífero que não mama, mas rói

Pois em toda verdade
Há sempre uma parte que dói




28 agosto, 2017

A FAMÍLIA TOP 100 E A LÁGRIMA QUE ROLOU NA MINHA FACE

Por:
Raimundo José Arruda Bastos
Regional CEARÁ















Durante mais um final de semana abençoado, repleto de alegrias, atribuições profissionais e familiares, bastou que eu batesse os olhos em uma foto da família na residência da minha irmã Regina, por ocasião do seu aniversário, para que eu sentisse um arrebatador desejo de escrever sobre a família e a graça de ter uma estruturada.

Deitado em uma rede com Marcilia, tendo ao redor meus filhos, e ainda olhando embevecido para o infinito céu azul e a imensidão do mar da praia de Águas Belas, senti a inspiração final para começar a escrever sobre a família. Era a tintura ideal, a moldura e a paisagem que esperava para o tema.

Para começar, necessitava de alguns dados, pois não gostaria de escrever só sobre os consanguíneos, mas sim incluir os afins, que vou me negar no texto a chamá-los de “agregados”, principalmente por reconhecê-los como fundamentais para o crescimento da família, em quantidade e qualidade. São todos muito amados!

Em uma breve pesquisa com minhas lindas irmãs, contabilizamos o número de cem pessoas considerando como início a geração dos meus amados pais. A quantidade me assustou e me fez cair na real que estou realmente ficando velho, embora me sinta como vinho, cada vez melhor, sem sequer notar o peso dos anos, uma vez que estou em plena forma. Resolvi, então, adotar o título de “top 100” em homenagem a todos.

A minha crônica tem por finalidade exaltar a importância da família como base de tudo, nosso porto seguro e um presente de Deus para todos nós. A responsabilidade, portanto, de um casal que inicia uma família é imensa, do tamanho do céu e do mar de Cascavel. A cada dia que passa, com a mudança dos tempos, as drogas, a violência social, as tentações da modernidade e a desagregação familiar, o desafio para as famílias é cada vez maior.

A célula mater de toda família são os pais, a fonte de tudo. Lembro com carinho, então, de Cesar Bastos e Maria de Lourdes, meus pais e principais protagonistas da minha crônica. A semente que fez germinar essa grande e frondosa árvore. Vai aqui minha homenagem a eles que são os protótipos e um exemplo a ser seguido por todos. Encontramos em muitas famílias outros Cesars e Lourdes que, como eles, tem muita dificuldade atualmente para criar seus filhos, mas, que com muito amor e responsabilidade, dedicam suas vidas pelas famílias.

Meu pai é o único da minha família que não está mais entre nós, está no plano superior, intercedendo e cuidando de todos. As lembranças da sua figura de magnífico pai, esposo e filho fez uma lágrima correr na minha face. Se você, assim como eu, não tem mais um dos pais e seus olhos marejaram ao ler esse parágrafo do meu texto, digo que tenho certeza de que você é ou será um excelente exemplo para sua família. Ter o coração aberto e sensível às emoções é muito importante. Não se reprima, demonstre todo seu amor à sua família antes que seja tarde.

Minha família, como a dos meus leitores, não é melhor e nem pior do que as outras, é só a minha família e isso faz toda diferença. É sangue do meu sangue e é por ela que me transformo em um gigante para enfrentar os desafios que a vida nos apresenta. É na família que encontramos forças para encarar as agruras da vida, as dificuldades, as provações, por mais difíceis que elas sejam. Não devemos nos sentir menores ao, sempre que necessário, apelar para o aconchego e o apoio familiar. Nossa família é para Deus o espelho da imaculada família de Nazaré.

Com a música do seriado “A grande família”, dedico essa minha crônica a todas as famílias do mundo. “Essa família é muito unida e também muito ouriçada; briga por qualquer razão, mas acaba pedindo perdão”. É assim que entendo ser família. Que Deus ilumine todos vocês que, como eu, tem uma grande família. Para aqueles que pretendem iniciar as suas e também para quem ainda não valoriza a que tem, digo que ainda é tempo e que o principal fermento para fazer crescer uma bela família é o amor, a união e a fé em Deus.



25 agosto, 2017

ATIRARAM NO LORIVAL

Por:
Marcos Gimenes Salun
Regional SÃO PAULO





Dona Zulmira, vizinha de frente:
         "Olha, Deus que me perdoe o que eu vou dizer! Não tenho nada com a vida dos outros. Eu não sou de me meter, mas eu acho que essa tal de Dedé não é flor que se cheire, viu, doutor! É um entra e sai naquela casa, que... Olha! Vou te falar um negócio! Parece um nãoseiquê... Sábado passado mesmo, você viu né, Olavo? Sábado passado foi um movimento danado na casa da Dedé... E cada tipo mais esquisito, Deus que me perdoe! Eu não gosto muito de ficar falando essas coisas, porque senão o Doutor vai pensar que eu sou fofoqueira como umas e outras por aí... Eu não! Eu só falo do que eu vejo e do que eu tenho certeza! O resto não é da minha conta! O Olavo me conhece bem, não é, Olavo? Eu não vou fazer queném inchirida da Ca­tarina, do 32, que vive se metendo com a vida dos outros. Eu não! Então, doutor... Como eu estava falando, no sábado passado eu vi, com esses olhos que a terra há de comer, uma zanzação de gente lá na porta da casa da Dedé, que dava até medo! Era carro que chegava, carro que saía, roncando os pneu, gente que entrava, gente que saía... E um barulhão, que só vendo! Sabe essas música americana, que ninguém en­tende nada? Então... no último volume, o senhor tinha que ver! Parecia um... Deus que me perdoe! Deixa pra lá, vai. Eu já disse que não gosto de ficar falando da vida dos outros. Então! Mas aí, né, quando foi lá pelas duas da madrugada... Já era mais que duas, né Olavo? Sabe como é, a gente deita cedo, mas fica a noite inteira acordada quando tem uma bagunça dessas, que não deixa a gente pregar os olhos... Pois é! Lá pelas duas da madrugada, ou um pouco mais, eu ouvi uma gritaria, um zumzumzum que dava até medo! Eu me assustei... Eu nem quis olhar pela janela, porque fiquei com medo. Chamei o Olavo, mas o Olavo parece que não liga quando eu falo! Ou não liga ou tá ficando surdo, porque com a bagunça que estava, e ele não me ouvir nada!... Só surdo mesmo pra não ouvir. Bom...Eu sei dizer que passei a noite inteira acordada. Mas eu não vi nada, não senhor. Se eu falar para o senhor que eu vi quem atirou, eu vou estar mentindo, e mentira comigo não tem vez! Desconfiar a gente desconfia, sabe como é, né, doutor.. Eu até acho que foi um cabeludo, que estava de calça rancheira desbotada e com um rasgo no joelho... Mas entre eu achar e ter sido ele mesmo... Eu não vi nada. Só o entra e sai, e assim mesmo até na hora em que eu fechei a janela e fui deitar. Depois só ouvi a barulheira que eu estou falando para o senhor. Não é, Olavo? Se eu tivesse visto, eu falava. Mas como não sou de ficar  conchetando como umas e outras por aí, que só abre a boca pra falar da vida dos outros... E depois, foi bem feito o que aconteceu! Isso é praquela cretina da Catarina não ficar se metendo com a vida dos outros..."

Binhoamigo da escola:
"Eu tava lá sim, ó. A Dedé convidou a galera toda, tá ligado? Tava o maior barato, doutor. Tinha que ver!  Altos sons, tá ligado? A Daysinha levou uma pá de CD importado que o velho dela trouxe dos Isteits, tá ligado? O velho dela vai pra América todo mês. Meu! Maior son­zão, cara... Putz! Pauleira mesmo! Mas não rolou nada lá não, sacou? Só tinha um whiscão e umas cerva que o pessoal fez vaquinha e comprou, tá ligado? A galera tava maneira porque a mãe da Dedé deixou tudo recomendado, sabe como é? Nada de sair pra umas diferentes, tá ligado? A gale­ra topou, senão não ia dar festa. E aí rolou tudo maneiro... Tinha uns caras que não era do pedaço, mas tudo gente boa. Convidado da Taninha e do Kiko. E se é convidado de alguém da galera, é gente nossa, tá ligado? E depois, essa de o pessoal aí estar dizendo que tava uma zoeria não tá com nada, tá sabendo? O som nem tava no último volume! Se puser o aparelho da Dedé no último... Meu!...Nem te falo, cara... Tava tudo muito maneiro, tá ligado? Só quando rolava um musicão que a galera curte mesmo de montão é que a gente aumen­tava um pouco... Depois, não! Tudo no comporta­mento, tá ligado.  Eu fiquei curtindo um som o tempo todo. Não sei quem atirou, não senhor. Acho que não foi ninguém da galera, tá ligado? O pessoal só curte uma... Não é de fazer esse tipo de zueira não, tá ligado? Pô! Maior roubada, meu! Só fiquei sabendo o que tinha rolado no dia seguinte, quando a Dedé falou. Aí eu fiquei injuriado, ó!  Agora, o senhor vê aí... Eu tava lá, mas não fiz nada! O senhor que vê aí, tá ligado?"

 Olegário, tio de Dedé e vizinho do lado direito:
"Eu não me incomodo que os meninos fiquem até as tantas se divertindo. Já estou acostumado. Eu gosto muito da juventude. Já fui de fazer minhas farras, quando era mais moço. Hoje em dia, não! Mas nos bons tempos... O que mudou foi o ritmo, os aparelhos de som mais potentes... No meu tempo se dançava muito bolero, daqueles de dançar de rostinho colado, o senhor co­nhece... Perfumes de Gardênia... Tinha samba-can­ção... Quando começava um samba-canção, não tinha par que ficava sentado... Depois que eu conheci a patroa, a gente ia junto nos bailes. Até casar. Mas de­pois que nós casamos, não saímos muito mais... Só de vez em quando... E depois tem outra: o senhor acha que ficava bem eu impli­car com a garotada, com minha sobrinha? Deixa eles que se divirtam, enquanto são jovens... Depois que começa a responsabilidade, os coitados não vão ter mais tempo pra isso... E depois, a Dedé é uma menina boa, estudiosa... Merece se divertir... A mãe dela, minha irmã Ana, pediu pra que eu tomasse conta da meninada, desse uma olhada de vez em quando... Mas eu não ia ficar lá no meio deles o tempo todo, né, doutor! Não tinha nem cabimento, numa festa da juventude, eu lá metido... Eu não vi quem atirou. E nem podia ver, se não fiquei lá o tempo todo. Mas tenho quase cer­teza que não foi nenhum dos amigos da Dedé. Eu acho que alguém fez essa safadeza para por a culpa nos meninos, só por causa do barulho. Eu acho que quem fez isso é alguém que não aproveitou a juven­tude, o senhor não acha, doutor?"

Dedé:
"A gente só tava comemorando. A Jujuba entrou em odonto na USP. Não é pra comemorar? O Tio Olegá­rio viu que não tinha nada de mais. Foi minha mãe mesmo quem pediu pra ele olhar. O senhor acha que a gente ia ficar zuando na minha própria casa?  E de­pois, atirar logo no pobre do Lorival, que nunca fez mal pra ninguém! Sem essa! Eu até já falei com a Dona Catarina, que me conhece, conhece minha mãe e conhece o meu pai... Mas ela está tão revoltada com o que aconteceu com o Lorival, que não quis nem saber de conversa. Disse que era pra eu me entender com o delegado. E eu juro para o senhor, doutor, por tudo quanto é sagrado: jamais eu ia fazer ou admitir que alguém fizesse isso com o pobre do Lorival. Foi pura coincidência atirarem nele justo no dia da festa lá de casa. Mas não foi ninguém de lá não senhor. Isso eu juro por tudo quanto é sagrado. Se o senhor quiser me responsabilizar pelo barulho do sábado passado, eu até assumo, apesar de não achar que estava isso tudo... Meu pai já me comeu a alma... Minha mãe já me falou um monte... Ainda mais quando a Dona Catarina veio tomar satisfação por causa do Lorival. Quem atirou no Lorival deve ter sido alguém sem alma... Acha? Fazer isso com a pobre criatura, que não incomoda ninguém..."

Olavo, marido de Dona Zulmira:
"O Doutor Delegado vai me desculpar, mas não tenho muito a dizer. Só sei que teve uma festa na casa da frente, e que acabou tarde. Não sei quem foi ou quem deixou de ir, porque isso não é da minha conta. Tam­bém não vi quem atirou ou quem deixou de atirar. Não conheço nenhum Lorival... A minha mulher é que fica mais em casa e sabe mais coisas da vizinhança. No sábado dessa festa, eu me deitei cedo e dormi. Não vi nada..."

Ana, mãe de Dedé:
"Eu bem que avisei a Dedé que não queria bagunça lá em casa. Ainda mais bem no dia em que eu e o pai dela não íamos estar em casa. Fomos no jantar anual da firma em que o meu marido trabalha... Mas ela insistiu tanto, pobrezinha! Disse que só iam comemorar porque a Jujuba tinha entrado na faculdade. E eu só concordei quando o meu irmão Olegário disse que vigiava, que eu podia sair tranqüila. E agora, veja o senhor, que vergonha... Ter que vir até aqui na delegacia dar explicação. Também, a Dona Catarina precisava ter dado queixa? Atiraram no Lorival, sim, mas... E daí? Se o senhor quer saber, não é a primeira vez que atiram no Lorival. No mês passado, aconteceu a mesma coisa, e a Dona Cata­rina não veio dar queixa... Desta vez, só porque tinha uma festinha dos meninos lá em casa, ela já achou que foi um deles... E da outra vez? Quem atirou no Lorival da outra vez? Também aconteceu numa noite de sábado, e não tinha ninguém na minha casa! Isso é que me deixa indignada com a Dona Catarina. Ela devia ter prova primeiro, antes de acusar os outros... Olha a confusão que fica agora: todo mundo tendo que vir aqui dar explicação... E, de mais a mais, lá em casa não tem criança de fralda... E na festa da Dedé tam­bém não tinha, pois isso eu  já averigüei direitinho..."

O Doutor Delegado:
"Da outra vez que atiraram no Lorival, foi com a mesma, digamos, com a mesma arma? Sei, sei...Está bem! É só!"

Dona Catarina, a do Lorival:
"Está bem, doutor. Eu retiro a queixa contra a família da Ana, vou pedir desculpas pra ela, pra Dedé, pra todo mundo... E caso encerrado... A menina dela foi falar comigo no dia seguinte, mas eu estava tão ner­vosa com o que aconteceu com o meu Lorival, que não quis nem saber. Acho que fui um pouco precipi­tada em ter vindo dar queixa. As duas vezes acerta­ram em cheio o coitado do Lorival. Se o senhor sou­besse a catinga que ficou... O pobrezinho tava todo melecado e arrepiado. Tive que dar banho nele com a loção de barba do meu marido, e ainda assim não saiu o cheiro. Ainda hoje, se o senhor for lá em casa, vai ver o coitadinho como ficou... Agora que o senhor tá me falando que quem atirou foi o filhinho do casal que mora no quarto andar do prédio ao lado, eu não sei nem o que dizer... Eu só acho que os pais deveriam prestar mais atenção na criança... Deixar o menino ficar atirando cocô pela janela... Onde é que já se viu? Quantos anos tem esse menino, doutor? ...Três? Quatro?... Que coisa! Mas, doutor, me diga o senhor que é mais experiente nessas coisas de investigação: será que não foi o pai ou a mãe do menino quem atirou o cocô do menino pela janela? Pra acertar bem na cabeça do meu papagaio!... Acha que o menino ia ter uma pontaria dessas? Olha, não sei não, heim doutor! Não é melhor o senhor investigar mais um pouco, doutor?


21 agosto, 2017

INSÔNIA

Por:
Vladimir Távora Fontoura Cruz
Regional CEARÁ




















Ah, que pena meu amor ter-te tão perto
E não poder afagar teu corpo inteiro
Nas tuas curvas trilhar o rumo certo
Desvendar febril teus íntimos segredos.

Quando em tantas noites frias e chuvosas
Invade-me, a vontade do aconchego
Desperdiças tontas horas preguiçosas
Lânguido, inda procuro e não te vejo

Ah, que pena meu amor a indiferença
Com que encaras a volúpia do amor
Vendaval intrépido da bem querença
Consome o sono, a paz do sofredor

Como dormir sentindo a chama ardente
Que toma conta de todo o meu ser
Me afasto, e carregando a dor premente
Te busco nas estrelas até amanhecer

Ah, que pena meu amor fechar os olhos
Tão logo deitas na alcova em flor
Arremessando aos rochedos e abrolhos
Meu desejo insano de fazer amor

E que pena, eu também às vezes sinto
Teu amor ser para mim um talismã
ao te olhar à noite não pressinto
És minha mulher, ou apenas minh'irmã.




19 agosto, 2017

ZEZINHO DA REQUINTA

Por:
Waldênio Florêncio Porto
Regional PERNAMBUCO











Procurei encontrar-te. Pergunto aqui, pergunto acolá. Indaguei do tempo. Ao ouvir o frevo lembrei-me de ti.. Você avistou Zezinho? Quem? O da requinta, meu amigo do Ginásio de Caruaru, do tempo de Luiz Pessoa. Aquele quieto, calado, de pouco falar. Mas que se transformava no Carnaval e sustentava na resposta pianística, toda a orquestra de metais de "Motoristas", ao executar o frevo "Fogão". Eu ficava junto dele, só para ouvir o som estridente da requinta contrapontar e, muitas vezes suplantar, os trompetes e trombones de vara. Você está agora se lembrando? Ali ele era absoluto e total. Não o aluno bisonho de Zé Leão e Silvestre Guimarães, que quase se escondia atrás da banca Gerdau.  Só se sentia mesmo a vontade com Machadinho, professor de música, maestro e seu comparsa. 

Você avistou Zezinho da requinta?

Não se continha. Acompanhava, em volteios com o instrumento, as evoluções dos passistas, como se, de seu canto, dentro da orquestra, pisasse as pedras do calçamento irregular em arqueios requebros coreográficos do frevo que saía do seu sopro e da sua alma.

Os clarins anunciantes do início do frevo criam a expectativa da folia. A batida alta do surdo, a metralha dos tarôs. A impaciência do porta-estandarte, que se inteiriçava todinho para começar os volteios. Machadinho na frente da orquestra. Fazia do trombone uma batuta. Estalava nos dedos, mais visto no gesto que escutado em meio a balbúrdia. Contava, um, dois, três. Levava à boca o instrumento. Estrugia, então, com o fragor de mil bombardas, o frevo, retido, contido, amado, desejado e festejado. Um desatino frenético de passistas, isolados em exibições individuais, abraçados como em dança de roda ou enlaçados em braçadas violentas da onda, que tudo enfrentava, derrubava e espantava, a lembrar os primitivos capoeiristas que desenharam a coreografia primeira do frevo nas ruas do Recife.

Mas, você avistou Zezinho da requinta?

Descubro-me no meio de uma orquestra de frevo, no tempo agora, no Recife Antigo. Deixo-me magnetizar pela música forte que surgiu naquelas mesmas ruas de pedras polidas, de calçamento riscado pelos trilhos da Tramways. Meus olhos enxergam emoções múltiplas condensadas no instante feérico, colorido, que a vida não desgastou. Meu corpo obedece às sístoles e diástoles do ritmo alucinante, que me desprende do momento presente e faz viajar nas imprevisíveis rotas da fantasia e do devaneio. Penetro, quase em transe na imaterialidade de um sonho lindo, desligado e liberto do mundo. Acordo na felicidade do momento fugaz, que se faz perene no infinito da satisfação plena. As pernas se tornam leves, flexíveis. Ensaiam passos, recuperam esquecidos meneios, se cruzam em tesouras, arqueiam, fazem o miudinho, se equilibram, fiadas na sombrinha que agito nos braços, sombrinha multicor, cheia de pingentes, que passa de uma mão a outra, entre as pernas, e sobe ao alto em grito de alegria.

Levado e arrastado pela emoção chego a frente da orquestra para me encontrar com dez trombones de vara, dourando a luz das gambiarras, os movimentos ritmicos das notas frevísticas se espalhando no ar. Logo atrás outro tanto de trompetes levanta seus bocais, como se fossem golfinhos brincantes naquele mar de música alucinógena. Aparecem na terceira fila os saxes, fazendo a parte pianística. São tantos e tão harmoniosos que encantam pela feliz combinação tonal. Quatro tubas, com enormes bocas, solam e sublinham o frevo. E uma delícia ficar junto deles e ouvir a marcação alta das notas graves. Depois os surdos e os tarôs completam o esbanjamento de alegria que mexe com crianças e adultos. Aquelas revolvem o inusitado da vida ainda por conhecer, estes o recordar de emoções extintas ou esperanças renováveis.

Atrás a multidão respeitosa, na distância protetora dos músicos, sem necessidade de cordões de isolamento, se esbaldando, na música-terra. Que prende, atrai e retém. Culto à extroversão e, contraditoriamente, a introspecção mais íntima. Catarse coletiva.

Não avisto Zezinho da requinta. Nem as clarinetas que enxameavam as orquestras de frevo de antigamente. Desapareceram, foram banidas, sumiram. Tampouco me encontro com Machadinho, o porta-estandarte Geleia, Chico Nunes, animador e presidente de Motoristas, Chico Porto, o carnavalesco Rei Momo, o Professor Zé Elias e Olímpio, que constelavam o carnaval de Caruaru.

Com meu irmão Wladimir, que mora em São Paulo e veio para o carnaval, ainda avisto, de longe, numa esquina, Zezinho da requinta, em meio aos saxes, instrumento para o alto, no estrídulo tocar. Corremos ao seu encontro, mas desaparece na miragem da nossa imaginação, que só o carnaval nos dá.

Sou tomado pelo braço da primeira morena e caio no passo, adolescente e com aquele riso franco quase desaprendido, ficado lá atrás.



18 agosto, 2017

O HOLANDÊS E A INDÍGENA

Por:
Pedro Guilherme Barbalho Cavalcanti
Regional RIO GRANDE DO NORTE












O forte soldado Hans Carol Spiessen, foi direto ao convento-prisão. Desejava confortar-se dos últimos dias tão terríveis, de batalhas e guerra. E desejava fazê-lo ao lado da adorada prisioneira Taciatã, pois conseguira subornar novamente a sentinela. Desta vez, conseguiu convencê-lo a deixar que entrasse na cela da selvagem. E assim ouviu o sentinela fechar a porta às suas costas.

– Goedenavond, Taciatã – Spiessen dava as boas noites enquanto a selvagem mirava seu olhar no soldado. – Consegui convencer o sentinela a me deixar entrar. Não me custou barato.

Outra vez, Spiessen utilizara sua cota de água e comida para subornar o sentinela. Nestes dias, com a falta de mantimentos cada vez pior, estes bens tornavam-se cada vez mais valiosos. Isso porque as forças holandesas não conseguiam avançar além do rio Beberibe e o pouco que lhes eram enviados da Holanda era dividido por todos os seis mil soldados. A comida distribuída em um mês mal dava para uma semana.

Neste momento, Spiessen sentou-se no centro da cela. Taciatã, agachada, pronta para defender-se, cerrou o olhar no estranho homem de alva tez e cabelos castanhos enquanto apertava-se num dos cantos da cela. Ele assim iniciava seu costumeiro monólogo com a selvagem.

– Pensei que a situação aqui na Terra do Açúcar logo estaria resolvida. Que uma paz seria firmada para que a libertassem. Mas as coisas vão de mal a pior.

A selvagem escutava. Mesmo que não entendesse uma só palavra do estranho idioma holandês.

– Estamos sofrendo ataques até dentro da vila de Olinda. Por isso, o coronel alojou minha companhia agora do Porto do Recife. Um péssimo alojamento. Mas, segundo ele, de mais fácil defesa. Diz que estaremos mais seguros lá. Afinal, perdemos tantos homens nos últimos meses. Mesmo os feridos, principalmente, os atingidos por balas de mosquete morrem em poucos dias. Ninguém sabe o porquê.

A selvagem olhou a forte porta de sua cela. Como até mesmo seu alimento era entregue por uma brecha na madeira, esta ficou fechada desde o dia em que a selvagem fora colocada ali. Por esta razão, ela espantou-se ao vê-la ser aberta neste dia para a entrada do soldado.

Spiessen apenas continuava a falar.

– Esses feridos, primeiro, são acometidos por contrações na mandíbula, de tal forma, que nem conseguem comer. Depois, começa a febre e os espasmos dolorosos por todo o corpo. Enfim amanhecem mortos. Dizem que foi o escorbuto. Os homens antes acometidos por esta moléstia não conseguem fechar bem os ferimentos e o ar pestilento deste lugar termina de fazer o resto. Não é a toa que todo exército está tão apavorado!

A selvagem tentava manter o olhar no soldado. Mas continuava deixando-o escapar na direção da porta de madeira. Pelo desejo de vê-la aberta. Não conseguia deixar de pensar que este soldado era sua melhor chance de escapar da maldita prisão que lhe prendia já há tantos meses.

A mente da selvagem revolvia mil planos para escapar. Começou a aproximar-se de Spiessen. O seu corpo deixava a escuridão daquele canto apertado da cela. A nudez resplandecente de seu corpo, se expunha aos olhos do soldado.

Ele estendeu a mão. Pensou no toque da selvagem. Em contato físico. Algo que ansiava por tanto tempo. Ela não o tocou. Começou a andar ao seu redor. Caminhou para suas costas. O soldado não deixava de conter a apreensão. Sabia do risco que estava correndo. Não podia deixar de pensar nos corpos mutilados pela ação de sua raça inculta. Ou de imaginar seu pescoço, ali, à mostra para Taciatã, pronto para ser esgoelado. Em suas costas, ouvia a selvagem grunhir palavras no idioma nativo. Seus passos continuavam lentos um predador avaliando a presa.

O soldado voltou a falar.

– Zuikerland não é nada do que esperávamos. Só vemos guerra, fome, doenças e morte. Parece que estamos no juízo final em meio ao calor dos infernos. A única coisa que me impede de abandonar tudo, a única coisa boa que encontrei aqui, foi sua companhia...

Um rufo selvagem calou o soldado. Não pôde continuar a frase. Engoliu seco. Pois, já tendo rodeado por trás do soldado, a selvagem agora estava em sua frente. Ela aproximou a sua face. Cravou seus olhos nos dele. Apenas então o soldado teve o ímpeto de completar as palavras interrompidas.

– É sua presença quem ainda me traz alegria, minha adorada Taciatã!

Neste mesmo instante, a indígena lhe beijou. Lábios nos lábios. Língua na língua. Ardente. Bravia. Feroz. Os longos e lisos cabelos negros caíram sobre a face de Spiessen. Ainda assim, apesar do ardente enlace, os olhos dela mantinham-se escapando para a porta de madeira. A verdadeira razão desta sua ação.

A selvagem retirou o casaco que cobria o corpo do soldado. Colocou a mão na gola da camisa. Rasgou-lhe os botões. Os seus delicados dedos repousaram sobre o forte peitoral. A outra mão desceu-lhe o dorso musculoso. Continuou até abaixo da cintura. Um abraço, voraz, envolvente, apertou-se. As grossas pernas femininas cingiram-lhe a cintura. O seu ventre nu roçou no volumoso desejo, escondido nas calças do soldado. Este desejo se libertou.

O enlace conjugou-lhes. Unificou suas intimidades. Foi quando o soldado sentiu as unhas ríspidas, violentas, perfurarem superficialmente a tez de suas costas. E, com o passar de cada dedo da selvagem em seu dorso, veredas avermelhadas emergiram nas costas do homem. Um grito de dor misturou-se com o regozijo, estranhamente, arrancou-lhe mais prazer.

O soldado volveu-a de costas. Observava seu esguio dorso, revestido apenas dos longos cabelos, enquanto os pés e mãos da selvagem tocavam o solo. Ele seguiu com seu olhar até onde os negros fios revoavam de sua cabeça. O perfil da face selvagem, olhando-o pelos ombros, ao giro do pescoço, enlouqueceu o soldado. Os olhos se cruzaram. Enquanto era tocada no regaço, o forte olhar do soldado penetrou na pupila negra da selvagem. Penetrou em seu íntimo. Penetrou muito mais! Em muitos lugares e posições, a selvagem arrancou-lhe sensações. Deixou-o enlouquecido de prazer.

Horas de depois, um ganido selvagem, concertado por um macho e uma fêmea, ecoou pelas ruas de Olinda!


16 agosto, 2017

APESAR DE WHITMANN

Por:
Selma Vasconcelos Figueiroa
Regional PERNAMBUCO














Vi a molécula
Profanada
sondagens genômicas
construindo algemas
à espécie ameaçada

nanoninvasores
em espirais caleidoscópicas
rompem pilares do labirinto ancestral

Vi a maquinaria genética
Penetrando a vidraria
Destilando o amor
ardente dos humores
as convulsões orgásticas

Vi as vísceras rastreadas
por objetos não identificados
naves iluminadas
desvendando laboratórios
da refinaria da vida

Vi a vida esvarizada
rôta gema matriz
derramando essências
em caves estranhas

Vi Joseph Jerningan
anônima cyber mulher
scanneresquartejados
laminados congelados
corpos objetivados
arquivados como folhas
não hierbas

Formas marginais
(fetos, cadáveres, excluídos)
Por espúrio valor
extraídos à espécie
pela cartografia maldita
da morte rediviva
em fantasmas digitais
pós humanos.


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