Regional ALAGOAS
Os fratricídios do Sítio Carahybas causaram justificados horror e perplexidade. A sociedade provinciana, logo no segundo ano do novo século (1902), que se esperava de progresso científico e de universal compreensão entre os homens, via-se ameaçada em sua base, a família, pela brutalidade e pela inexplicabilidade do tenebroso acontecimento. Vivia o Brasil a denominada "República Velha" sob a presidência de Campos Sales, e em Alagoas, a "oligarquia Malta" era prestigiada pelo Governo Federal por sua política de apoio as oligarquias regionais, conhecidas como "política dos governadores". O catolicismo romano estava sob a égide da encíclica papal "Rerum Novarum", promulgada por Leão XIII em 1891; houvera o massacre genocida de Canudos (1897), e o Juazeiro do Norte estava sob grande efervescência política e religiosa.
A República (1889) trouxera a inflação, instituíra o
casamento civil e separara a Igreja do Estado. A família era alcançada, pois,
por pressões e por mudanças sociais importantes, as quais certamente
atingiram-na em sua estrutura dinâmico-social.
Qual teria sido, interrogava-se, a "... causa que levou
essas duas infelizes mocinhas a prática de atos de verdadeira selvageria, que
alarmaram a sociedade? " A imprensa, emergente porta-voz do estarrecido
meio-social, tornava públicos os delitos, questionava-os e exigia o seu
esclarecimento, dentro de um padrão científico e legal. O drama daquela família
agrestina, humilde e desconhecida, no seio da qual simplórias adolescentes
praticaram crimes tão bárbaros e irrazoáveis que as fizeram derramar, no seio
da própria família, o luto a dor e a desolação, tornando-as para sempre
desgraçadas..." sensibilizou ao bacharel em Direito, Dr. Euclydes Vieira
Malta, chefe da clã que então detinha o Poder Público em Alagoas. Homem de
formação humanística, este Governador ocupou-se pessoalmente do assunto, já que
na época sobravam tempo e sensibilidade aos Chefes de Estado para levá-los a
este tipo de envolvimento. Por esta razão, o próprio Governador assistiu a um
ligeiro exame medico a que foram submetidas ambas as acusadas e, inclusive,
fez-lhes algumas perguntas. Daí julgou conveniente designar uma comissão de
médicos para elaboração de um documento pericial acerca do caso, ou mais
especialmente, sobre o estado mental das irmãs fratricidas. Outro, aliás, não
era o desejo formulado pela imprensa, que por seus principais órgãos apontava o
mesmo caminho e exigia um trabalho de alta qualidade, como já foi visto. Todo o
absurdo da situação estava a exigir uma explicação científica, vale dizer,
aceitável pela sociedade: só assim poder-se-ia compreender e posteriormente
assimilar tão hediondo acontecimento ameaçador da integridade da família e, por
extensão, do "status quo" vigente. E só a loucura, isto é, a não
razão, poderia justificar ameaça assim radical ao "stablishment".
Mobilizaram-se, pois, a imprensa, o Poder Público e o Saber Cientifico. Este
último representado pela Medicina Legal e caudatário do anterior. E que pelo
cientificismo dominante nas elites culturais, caberia ao discurso psiquiátrico
lançar luzes sobre a questão. Desejamos expressar que o manifesto humanitarista
das instituições, ocultava a existência latente e preponderante de urna
imperiosa necessidade de serem contemporizadas as forças em jogo e de se
apaziguar o meio social. E que isto se processou através do Saber Científico,
via discurso psiquiátrico e diagnostico médico-legal. Um sofisma social que
poderia ser expresso da seguinte maneira: se tudo houvesse acontecido em
decorrência de uma doença mental cientificamente definida, essa patologia,
conteúdo e continente dos escabrosos fatos, encerraria a questão por explicá-la
e justificá-la racionalmente.
Estaria a salvo a família, célula mater da sociedade: somente a loucura mais extrema levaria ao
fratricídio mais incompreensível e gratuito.
As instituições sociais cumpriram o seu papel. As instituições
estavam apaziguadas.
Vale ressaltar que embora não fosse essa uma atribuição do
documento médico-legal em apreciação, em momento algum os seus autores
mencionaram qualquer preocupação terapêutica em relação a Antônia, considerada
como portadora de afecção mental, ou alguma forma educativa ou reeducativa em
referência a Rosa. Já Euclydes Malta, em sua mensagem acima citada, lamenta
nada poder fazer pelas acusadas: "Deploro não possuirmos uma casa ou
estabelecimento, onde pudessem ser convenientemente observados e tratados indivíduos
em tais condições, e mesmo educados no caso de lhes voltar a integridade da razão.
Estivessem em melhor pé as nossas finanças e eu não teria dúvida em vos pedir meios,
para que se fundasse mais esta pia Instituição”.
Fica evidente que tal "humanística preocupação"
tinha como linha mestra, custodiar as menores em uma nova Instituição pia, isto
quer dizer, segregá-las, afastando-as do meio social e familiar onde viviam, no
sentido de protegê-las a qualquer custo.
Que bom para Antônia e Rosa que as finanças do Estado de
Alagoas, já àquela época, estivessem tão combalidas!
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