O que relato aqui, seguiu o destino natural das coisas,
começando pela magia dos encontros. Eles ocorreram em abundancia, em número de
quatro e todos numa só noite.
Tudo aconteceu, por causa de um comício, de uma banda de
música, uma prata sumida e a desilusão de um menino pobre de sete anos.
Foi lá pelos anos 1945, na minha cidade natal, de ruas de
terra batida, onde dominava a ordem beata dos franciscanos maiores, habitantes
severos do convento do Santuário. Mas... o fato ocorreu na esquina da padaria
Rosicler, do influente padeiro Guaraci.
Lá estava instalado um palanque de madeira, pronto para um
comício do partido PSD, contrario aos ideais políticos do meu saudoso pai, o
Rafael português, mecânico e compadre do candidato à prefeito. Coisas do
capricho do destino, fugindo às explicações ditas racionais dos simples
mortais.
O clima na cidade era de euforia do pós-guerra, marcado pela
esperança do mundo melhorar.
À tarde, fui procurado por um vizinho nosso, que me ofereceu
uma prata de 400 réis, para que eu soltasse uns foguetes no comício da noite.
Lógico que perguntei a razão dele não os soltar. Explicou-me que não poderia
fazê-lo, porque iria aplicar injeções de penicilina, em uma cliente da farmácia
(cumpre-se notar que aquele era o remédio miraculoso da moda, no mundo
inteiro). A cobiça mexeu alto na vaidade e topei soltar os foguetes, desde que
ele não contasse nada para os meus irmãos, porque éramos proibidos pelo meu
pai, de lidar com fogos de artifício.
Ao chegar da noite, fui ao local do comício, mas ainda era
cedo e ele não havia começado. Fiquei maravilhado com a banda que já animava a
festa e para o meu deleite, tocava a música Asa Branca. Quem cantava era o
famoso Luiz Gonzaga, sanfoneiro, acompanhado pelo seu compadre Chico Paca tocando
o zabumba e outro músico, que tocava o triângulo, do qual nunca soube o nome.
Suas roupas, suas músicas e suas danças me eletrizavam.
Eu estava ali embevecido, quando o boticário puxou-me pelo
braço e me levou para um lugar um pouco afastado do povo, que já se aglomerava
para evento. Na escuridão da noite, ele me deu um saco de estopa e depois
sumiu. Dentro dele havia os rojões, que eram foguetões de vara comprida e que
subiam espocando lá no céu, produzindo um estrondo bonito. Eu já tinha visto
esses fogos de artifício serem soltos e quem o fazia, espetava o pé da vara no
chão e chegava um tição no pavio. Peguei o primeiro foguete e notei que a sua
vara era bem curta, não mais que três palmos, mas justifiquei para mim mesmo,
que deveria ser coisa da modernidade. Eu não tinha um tição, mas no saco de
estopa havia uma caixa de fósforos. Cumpri então o mandado, porque a cobiçada e
sonhada prata, já pesava no bolso da minha calça reles, de morim barato e
suspensório de tiras de pano.
Agachei, espetei a vara curta no chão, pisei na caixa de
fósforos, risquei um palito e ateei o estopim. O bicho chiou, alumiou o chão e
saiu feito louco me dando uma cambota. Logo em seguida, o danado, ao em vez de
subir, correu para cima do povo, como se fosse um busca-pé infernal,
chamuscando e perseguindo o pessoal da
plateia.
Ante ao inusitado, todos fizeram um alvoroço horrível, que
nem o estouro de uma boiada, gritando, atropelando uns aos outros, caindo e se
levantando ligeiro. As pessoas vieram em minha direção e assustado, larguei o
saco com os foguetes e dei no pé.
Quando tudo sossegou, e até os músicos tinham fugido, meti a
mão no bolso e cadê a prata? Nada, nem sinal da bendita. Voltei ao lugar do
acontecido, despistei, corri os olhos pelo chão e lá não estava nem o saco dos
foguetes e nem a minha moeda. No palanque só havia o candidato, xingando e
gritando que iria por a polícia no encalço do malandro que acabara com o seu
comício. Tremi nas pernas e de tanto medo, tive na hora, uma crise de asma.
Tirei a bombinha de Isuprel do bolso, usei-a e logo após fiquei aliviado.
Voltei a procurar a valiosa prata, meu tesouro, mas muito preocupado, pois se
descobrissem que a autoria do delito fosse minha, eu levaria uma surra de
deixar saudades. Sentei-me no meio fio da rua sem passeio, descansei e tentei
recompor as idéias. Fui novamente aonde soltara os fogos, mas para infortúnio
meu e como a infelicidade tem ajudantes, uma nuvem negra tampou o luar.
Assentei-me de novo e esperei a luz voltar. Logo que ela apareceu, vi uma coisa
redonda, do tamanho da minha prata, brilhando no chão. Ansioso, corri e levei o
dedo para apanhá-la, só que para meu desespero, o objeto era mole, onde conclui
desiludido, ser uma plasta de catarro. Triste, subi a rua e fui para casa. A
minha mãe já me esperava no portão. Pegou-me pelo braço e pacientemente,
olhando nos meus olhos, me disse: -- Você vai apanhar, pois estava no comício!
Eu quis negar, mas estava com a roupa imunda e na minha cara, de branco,
existiam só os meus olhos. Levei uma surra e tive que tomar um banho frio de
bacia, mas fui dormir quente, pelas varadas nas pernas.
No outro dia encontrei com o boticário e quando ia reclamar
do sumiço da prata, levei duas boas cocadas na cabeça e ainda tive que escutar
um falatório danado, por ter executado tudo errado.
Como não houve lesões graves nos comiciandos, o caso não foi
investigado e virou pandega na cidade. Perdi a prata, a chance de ser um herói,
tudo ficou esquecido, mas o menino que mora dentro de mim continuou por muito
tempo desiludido.
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