Vilma Clóris de Carvalho
Regional PERNAMBUCO
E-mail: vilmacloris@gmail.com
- Tide, venha chupar uns roletes. A caiana está cheia de
caldo.
Lembrança da infância. Nada tem a ver com o corpo estendido
na mesa do necrotério, enquanto aguarda a roupa para ser colocado no caixão. A
palidez é a de um boneco de cera. Um morto. Não é meu pai. Não o conheço.
- Mana, nosso pai não existia mais. Confuso, esquecido, em
nada lembrava o chefe da casa, provedor, guardião da moral da família. A doença
de Alzheimer não perdoa. Tenho visto alguns pacientes que me levam a desejar o
desenlace. Mas temos que esperar. Atualmente, vem sendo discutido o poder do
homem sobre a vida e a morte. Em algumas circunstâncias já pensei na eutanásia,
mas não sou forte o suficiente para assumir uma decisão desta amplitude.
Prefiro encarar o fim natural do pai que discutir as condições de vida que ele
poderia continuar tendo. É angustiante.
- Benicio, a morte sempre me perturbou. O nascimento também.
A experiência de ver alguém chegar à vida a partir de um estado de não
existência ou, de ir a um estado de não existência após ter vivido, mexe
comigo. Sobretudo quando o desfecho diz respeito a alguém de quem eu conheço a
grandeza e a luta envolvida em sua construção.
Foi uma noite de chuva e vento forte enquanto a família
aguardava o desfecho. Sem estertores, mansamente se foi. Mathilde não derrama
nenhuma lágrima. Sentada ao lado do corpo, de cabeça baixa, o rosto parece
ausente. O irmão insiste em continuar a conversa.
- Enquanto teve saúde resolveu tudo por você e agora, como
será?
- Tenho sensação de vazio, de fim de estrada. Parada no
tempo, sinto-me no limbo.
- Fala alguma coisa, Tide. Faz bem.
-Morreu vovó, nasceu Augusto seu primeiro bisneto; faleceu
papai, Noêmia está grávida, em breve nasce seu filho. Pensava nessa alternância
tão pouco inteligível que é a existência. A vida não se esclarece.
São cinco horas de um despertar que mal começou. Já
amanhece, mas ainda não é claro. Na linha do horizonte a tênue claridade de
encontro às nuvens cria desenhos que lembram uma cidade fantasma. Pela janela
Mathilde olha o jardim.
-Aristeu, telefone para Eduarda.
-Aquela do bufê?
-Sim, filho. Devemos providenciar café, chá, biscoitos, água
e um garçom. Muitos virão demonstrar sua solidariedade e teremos que recebê-los
à altura.
- Aqui fala dona Aurélia de Castro Machado. Arlindo, é urgente.
-Meu marido acaba de falecer. Tome as providências
necessárias. Quero tudo de primeira qualidade. Aqui no Hospital Samaritano.
Aguardo sua presença.
-Mãe, estamos em condições de enfrentar esta despesa?
-Benício, não é hora de pensar em detalhes.
-Mathilde, vamos em casa tomar banho, café e nos prepararmos
para a cerimônia. Vista o vestido azul marinho. Está bem de acordo. Vou ver se
Adelaide pode ir até lá ajeitar nossos cabelos. Precisamos lembrar que
estaremos em evidencia. É importante voltarmos o mais rápido possível. O
enterro será às dezesseis horas.
Horários e etiquetas me doutrinaram toda a vida. Aceitei
sempre modelos prontos para usar em cada situação. Habituei-me com o sistema.
Não levo em conta minhas preferências. Nem as conheço. Parece que em cada
circunstância me desconecto de mim e ajo de acordo com as normas estabelecidas.
Sou um paradoxo. Um mundo interior vasto e complexo com um comportamento
simples, cumprindo de acordo com o esperado. Dificilmente surpreendo.
Fragmentos da convivência com meu pai afloram em estilhaços. São retalhos que
nem sempre se harmonizam – o cheiro da moagem da cana, a procissão de Nossa
Senhora do Carmo, o doce japonês no retorno da missa.
O ritual se processa segundo as determinações de minha mãe.
As lembranças tem o poder de fragmentar a alma. São instantes retirados de um
todo, ao sabor do momento, quase sempre sem lógica aparente. Não sei como sou.
Nas poucas vezes em que tentei ser diferente do que se esperava, senti-me
inadequada.
- Benício, anote os nomes das empresas e famílias que
enviaram coroas e assinale as maiores e mais bonitas.
- Não vou fazer isso, mãe. Tenho coisas mais importantes
para sentir e me ocupar.
- Pode deixar. Eu faço.
- Não poderia viver sem sua presença, Aristeu.
De repente me dou conta de que um sentimento de prazer,
burlando a minha guarda para manter a postura esperada, se insinua no meu
peito. Sempre a ler, ouvir, observar e falando pouco, desenvolvi a arte de
especular o que vai na alma. O prazer que se instala vem de pensar que, ao
longo deste dia, não serei obrigada a sentir, nem reagir, nem providenciar, nem
me torturar. É condizente com as circunstâncias que eu esteja chocada. O que se
passa para além das aparências, ninguém vê. Na minha mente, algo sem cor, som,
nem forma, mas atribulativa. Ouço a voz de minha mãe:
- Mathilde, fique
atenta aos acontecimentos. Preste atenção. Amanhã você se entrega a seus
devaneios inúteis.
Não me iludo com disfarces exteriores. Frases e gestos se
enquadram em comportamentos predeterminados, adequados à situação. Dia informe. Não parece fazer parte do
calendário. É como uma nota fora da partitura.
- O descanso eterno dai-lhe, Senhor, e que a luz perpétua o
ilumine.
- Amém.
Padre Antonio encerra a cerimônia. A família, em
alinhamento, caminha atrás do carrinho que conduz o caixão: dona Aurélia, a
viúva e seus filhos - Aristeu e sua mulher Felicia, Mathilde e Benicio. Noêmia
não compareceu pelo adiantado estado da gravidez.Os demais presentes, os
seguem. O rumor dos passos se assemelha a um batalhão em marcha.
A primeira vez que entrei num cemitério, ainda adolescente,
fui tomada de emoção à expectativa de pisar um terreno que guardava corpos que
eu não sabia a quem pertenceram, mas que viveram vidas. Estavam enterrando meu
avô. Agora é meu pai, um dia serei eu. Me ocorre a substituição das pessoas ao
encerrarem seu tempo. A vida se processando continuamente enquanto cada
indivíduo é um instante. Meus irmãos terão continuidade através de seus filhos.
Eu sou semente que não vingou. Os ciprestes não se movem, o dia está abafado.
Começa a escurecer. Uma folha cai, um passarinho voa, outro pousa no galho para
aguardar o amanhã.
- Aurélia, meus parabéns. O sepultamento de Eurico de Castro
Machado foi impecável.
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