Helio Begliomini
Regional SÃO PAULO
E-mail: heomini.ops@terra.com.br
Inesperadamente
tive que parar o veículo em plena Rodovia dos Trabalhadores devido a um estouro
do sistema de refrigeração de ar para dentro do carro. Muita água quente e
vapor impediram a visualização e acenaram para a possibilidade de fogo no
motor. Mais que depressa abandonei o carro e para longe me dirigi. Passados
alguns minutos, após constatado a não explosão, conduzi manualmente o carro
para o acostamento. Estava sozinho, porém Deus me vigiava.
Terminado
o sonho de não estar morto, pedi rapidamente ajuda a um mecânico da Dersa
através de um dos aparelhos telefônicos colocados ao longo da estrada. Enquanto
aguardava o socorro, fiquei contemplando o motor todo enfumaçado com ar de
grande ignorância e, ao mesmo tempo, com grande fúria. Havia levantado cedo e
tinha que chegar a São Paulo para atender vários pacientes previamente
agendados. Sentia muita tristeza e tinha a sensação de pouca perspectiva de
sair daquele lugar em curto prazo. A falta de poder me comunicar com o
consultório aumentava minha ansiedade.
Em
meio àquele cenário, muito desolador para mim, pois parecia que tinha caído um
raio, vejo andar pelo acostamento um transeunte que paulatina, mas firmemente
vinha de longe se aproximando. Ao chegar perto, parou, e discretamente olhava
para mim e para o carro. "O que aconteceu?" – Perguntou ele.
Sem
quase encará-lo e ainda com amargo desgosto pelo ocorrido, contei-lhe toda a
história, acentuando a minha indignação pela falta do transporte. Após um mudo
silêncio, começou humildemente a contar que era de Recife e que há pouco estava
em São Paulo para tentar a vida. Comecei então a fitá-lo e logo diagnostiquei
em meio à sua desnutrição, hemiatrofia corporal em virtude da acentuada perda
muscular direita. Não era velho, talvez uns 36 a 38 anos, mas sua aparência
dava-lhe uns 6 a 8 anos a mais. Estava desgastado... sofrido.
O que o senhor
fazia lá, perguntei.
Era fiscal de
ônibus. Estou aqui tentando uma vida melhor. Em seguida complementou: estou
andando a 5 quilômetros. Minha mulher e filhos estão alojados embaixo daquela
ponte, lá atrás, onde o senhor passou.
E o que o
senhor está fazendo?
Esta vendo
aquele povoado lá adiante? – Sim. Estou indo para lá para ver se consigo um pouco
de comida para meus filhos: arroz... feijão... pão... não tenho nada e eles
estão com fome.
Mas onde o
senhor vai, fica a pelo menos uns três quilômetros! Não é muito para quem já
andou 5!
É... depois
devo voltar os 8 quilômetros com a comida. Eu tenho que conseguir... eu vou
conseguir! Deus vai me ajudar!
Retruquei-lhe
quase que anestesiado. Olha, se estivesse com o carro bom, levaria o senhor até
lá.
– Muito
obrigado, ele replicou.
Em
meio a um clima de perplexidade e de desapontamento de ambas as partes, ele
súbita e cordialmente exclamou quase que hipnotizado: É... cada um tem os seus
problemas!
Concordando
com ele e ao mesmo tempo sem ter o que dizer, acenei a cabeça confirmando sua
dura e amarga sentença: “Cada um tem os seus problemas!”
–
Bom, já vou indo. Espero que o senhor consiga logo alguém para arrumar o seu
carro. Novamente mostrei-lhe interesse em levá-lo até o povoado, mas
impossibilitado de fazê-lo, ao despedir, dei-lhe uma certa quantia em dinheiro
para ajudá-lo no seu propósito.
Aos
poucos ele foi desaparecendo no horizonte da estrada. Entretanto, mais do que
ninguém naquele dia, ele esteve presente em minha mente. Teria sido realmente
um homem? Ou um anjo?!
Em
pouquíssimos minutos compartilhamos dificuldades aparentemente similares e
grandes, mas irremediavelmente diferentes.
A minha... era
pessoal; a dele... familiar.
A minha era
momentânea, transitória e supérflua. A dele... crônica, permanente e
substancial. Eu estava esperando pelo mecânico, e ele depositando sua esperança
em Deus.
A minha era de
locomoção. A dele de sobrevivência.
Tínhamos a
mesma dificuldade? Com certeza, não!
Em pouco
tempo, comecei a olhar que o estouro do sistema de refrigeração do ar do carro
tinha sido um grande presente, pois vivenciei uma inesquecível lição, aprendida
há muitos anos, na minha adolescência, numa frase lapidar: “Eu reclamava por
não ter sapatos, até que um dia, encontrei alguém que não tinha pés”.
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