29 outubro, 2018

MÉDICO E ESCRITOR



Médico escreve, é natural que o médico escreva, faz parte de sua formação e da sua profissão escrever. Histórias clínicas, hipóteses diagnósticas, relatórios, pareceres, laudos, atestados, receituários... o que os pacientes dizem ou respondem, os sons que ele percebe na ausculta clínica, na palpação, na percussão, tudo é transcrito para o papel ou para a tela de um computador.

A produção científica na medicina, publicada num sem número de revistas e periódicos, é a maior entre todas as profissões, disso não tenho  dúvidas. Mas não é dessa que trato aqui. Refiro-me à literatura não científica, produzida pelos médicos em todos os rincões do mundo e que nos propiciou conhecer nomes como Sir Arthur Conan Doyle, o criador do célebre detetive Sherlock Holmes, formado pela Universidade de Edimburgo; Anton Tchekhov, que cursou medicina na Universidade de Moscou e é considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.  A sinergia dele com a medicina e a literatura se estabelece, de forma clara, na dualidade: “Fico satisfeito quando me dou conta de que tenho duas profissões, não uma. A medicina é a minha esposa legal, a literatura a minha amante. Quando canso de uma, passo a noite com a outra. Pode não ser uma situação habitual, mas evita a monotonia; ademais, nenhuma delas sai perdendo com minha infidelidade. Se não tivesse minha atividade médica, dificilmente poderia consagrar à literatura minha liberdade de espírito e meus pensamentos perdidos. Outro nome lembrado  é o de A. J. Cronin, autor do clássico A Cidadela, de temática tão atual como nunca. No Brasil, destacamos Guimarães Rosa, um dos nossos mais festejados escritores, autor de obras como Sagarana e Grande Sertão: Veredas, que se  formou  na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, sendo que chegou a ser Oficial Médico Militar. E Moacyr Scliar, gaúcho que  cursou medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com especialização em Saúde Pública, um dos mais produtivos autores nacionais, de obras portentosas como A majestade do Xingu, O imaginário cotidiano e A Paixão Transformada. Neste último livro, Moacyr Scliar reúne e comenta trechos de textos que, ao longo da história, registraram opiniões e fatos relativos à doença e à cura. Ao fazê-lo, com a acuidade de sempre e o humor contido que caracteriza sua prosa, resgata momentos privilegiados que assinalaram a trajetória da medicina e da luta do ser humano contra a doença. Diz ele: “A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes inarticuladas do paciente: o gemido, o grito, o estertor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: a anamnese, o diagnóstico, o prognóstico. Vozes que falam da doença, vozes calmas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar: palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais.”

Não poderíamos deixar de citar Joaquim Manuel de Macedo, autor de A Moreninha e Memórias de um Sargento de Milícias, um dos mais famosos romances de costumes da história da literatura brasileira, ainda no século XIX. Não é sem motivo que o escritor carioca é patrono da Academia Brasileira de Médicos Escritores – a ABRAMES.
  
Em Sergipe, essa participação de médicos na literatura não científica também é expressiva, só para citar Rodrigues Dória, Edilberto Campos, Ranulpho Prata, Abreu Fialho, Augusto Leite, Renato Mazze Lucas, Antônio Garcia, José Abud e Aírton Teles, só para citar os mais antigos.
  
Todo esse introito é pano de fundo para anunciar, com júbilo, o lançamento em 18 de outubro último – Dia do Médico - no Museu da Gente Sergipana, da segunda coletânea de prosas, poesias e contos da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional Sergipe – intitulada HUMANIDADES *, com a participação de vinte e sete médicos escritores vinculados às academias literárias e à própria instituição.  Mais de 200 pessoas compareceram à prestigiadíssima noite de autógrafos, com as presenças das maiores lideranças intelectuais de Sergipe, e de outros estados, a exemplo dos médicos escritores José Maria Chaves, do Ceará, ex-presidente nacional da SOBRAMES e Ildo Simões, da Bahia, que esteve acompanhado de mais dois colegas da Boa Terra.

No lançamento foi realizado um Sarau líteromusical com homenagem ao médico poeta Airton Teles Barreto, in memoriam e ao médico compositor César Faro, com participação de diversos artistas da terra. Foi uma noite radiante, que mostra toda a pujança da SOBRAMES Sergipe, hoje reconhecida e citada naturalmente nas rodas literárias, com forte presença na agenda cultural de Sergipe.

Médicos não só clinicam, operam, investigam, médicos escrevem, médicos fazem uma boa literatura. É o universo ampliado dessa dupla militância. Somente na Academia Sergipana de Letras, sem citar as demais academias, oito médicos atualmente integram o seu quadro, incluídos na lista esse escriba, mais o Dr. Sousa, que será empossado no próximo dia 30 de novembro. Além deles, o decano de todos, Francisco Rollemberg, José Abud, Eduardo Garcia, Marcelo Ribeiro, Marcos Almeida e Paulo Amado, recentemente empossado. Trata-se de uma consistente presença, que ilustra e dignifica a Casa de Tobias Barreto.
   
O famoso pintor espanhol Pablo Picasso dizia que há dois tipos de artista: os que transformam o sol numa simples mancha amarela e aqueles que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol. Por trazerem a sensibilidade para a literatura, muitas vezes como fruto  da prática diária da profissão, seus medos e anseios, o contato com a linha tênue que separa a vida da morte, o sofrimento e a dor, eles podem muito bem se enquadrar nessa segunda condição.

*Clique aqui e veja>>>>>  FOTOS DO LANÇAMENTO


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